segunda-feira, 30 de março de 2009




"Ele tão doce, beijou os lábios selados dela, castos de inocência. Segurou seus ombros, olhou para baixo em direção aos seus olhos e esboçou um sorriso sem vontade.

"- Eu gostaria muito de te amar de verdade, mas não consigo."

Josefine já sabia, mas mesmo assim doía ainda mais quando vinha da boca dele. Ela o abraçou tão forte que seu rosto doía da força que fazia pra não chorar. E ele lhe parecia maior do que ela, ou ela que se sentia menor, não sabia bem. Ela se agarrava tão forte ao seu colete cinza que sentia as unhas perfurarem a pele através da roupa dele. Ela mal respirava, não queria que ele fosse embora.

"- Eu gostaria que tu soubesses... Que eu tentei... De verdade, eu tentei."

Ele pesava as palavras pra não lhe machucar, ela o odiava por isso. Talvez fosse mais fácil pra Josefine se ele não fosse tão gentil até o final.

"- Não me odeie, tu fostes minha última tentativa, minha última aposta... Talvez em mim mesmo, talvez na própria sorte... Eu não posso continuar usando-te desse jeito, é injusto... É injusto."

A cabeça de Josefine gritava, era puro desespero. Maldito idiota, era isso que ele era. Filho da mãe, ela o amava e ele sabia. Ele não a amava e sempre deixou isso muito claro. Ele sempre lhe foi fiel, nunca beijara outra, nunca tocara outra. Sua traição lhe era muito maior, porque ele era desleal. Amava outra pessoa em pensamento, despia-a em seus desejos noturnos. Josefine sentia inveja da outra, não ódio. Josefine a invejava! Muito...

"- É ela, não é? Ela te chamou e você vai como um cachorro a lamber-lhes os dedos de migalhas jogadas no chão... Maldita, levanta as saias pra uma dúzia de homens por noite naquele bordel fétido e ainda assim você acredita que ela é sua? Só sua?"

Ela não conseguia se controlar. Aquela meretriz ia lhe levar a dignidade! Ele era cego? Estúpido? DEUS! Ela precisava salvá-lo daquela infeliz! Maldita! MALDITA!


"- O que está fazendo?"

"- Eu te amo, não me odeie..."



Josefine sacou o punhal de dentro do criado-mudo e enfiou-lhe na barriga até sentir o peso dele sobre seu pulso. Os olhos dele se arregalaram para o nada, sua pupila dilatou-se levemente, sua mão roçou levemente o rosto dela. A mão dela se enxarcava cada vez mais com o sangue quente, pulsante, denso como mel. Ela escorou o corpo dele no dela, e ele, balbuciando alguma coisa ininteligível deu seu último suspiro cambaleante em direção ao chão.

"- Eu te amo muito, não me odeie..." - Ela sussurrou ao ouvido do corpo sem vida.

Josefine fechou os olhos dele e beijou-lhe as pálpebras. Levantou-se do chão empoeirado ainda suja de sangue e saiu porta afora em direção à zona boêmia do vilarejo. Entrou na tal taverna com todos os olhares voltados para ela. Olhou para os lados e avistou a vadia contorcendo-se semi-nua em cima de um senhor gordo, fedendo a charuto.

"- Maldita cortesã dos infernos!"

Agarrou-lhe os cabelos cacheados jogando-a no chão apontontando o punhal em direção à sua garganta.

"- Se sabes tantos truques, me diz: Sabes aparar punhal com a boca?"

O senhor gordo levantou-se rapidamente e lançou-se em cima da ameaçadora senhora suja de sangue.

"- Minha senhora, pelo amor de Deus! - Estás louca?"


Ela se contorcia de raiva, elevava seus pés do chão e se debatia feito uma criança mimada girando o punhal afiado no ar. O senhor segurava-a pelos pulsos fortemente.

"- Queimem a vadia! QUEIMEM! Ela não merece viver!"

"Pelo amor de Deus, minha senhora, o que esta senhorita lhe fez?"



O peito arfava de medo, as bochechas muito rubras e os olhos muito abertos evidenciavam o pavor com que a meretriz olhava a agora tresloucada Josefine.

"- Essa tal de Dominique matou meu esposo! VADIA! Queimem-na! Feiticeira!"

Josefine apontava o punhal para a mulher apavorada, tirando suas forças de todo o ódio que agora lhe dominava. Não havia cansaço. O senhor começou a lhe afrouxar os pulsos, não agüentava nem os próprios ossos velhos, quanto mais uma mulher tomada de raiva.

"- Mas Dominique... Dominique... Está morta..." - Disse a ruiva, que agora tentava recuperar-se do grande susto que tomara.

Josefine não acreditou na história digna de fazer crianças dormirem, torceu-se convulsivamente para trás e soltou um riso sonoro.

"- Mas eu ainda não a matei, aí está ela, a vadia dos cachos de fogo. A feiticeira francesa... Vadia..."


Ela se jogava papar os lados enlouquecidamente tentando sair de sua prisão humana. Soltou-se dos braços do homem, que com dois passos para trás, lhe olhou com ar de desconfiança. Josefine tirou o cabelo do rosto, sujando-o de sangue. Os olhos eram puro ódio. Os lábios eram riscos sem cor.


"- Dominique enforcou-se pela manhã..."- O senhor respirou forte e começou um acesso de tosse carregada.

"- Mas... Eles... Planejaram fugir esta noite..." - Ela ria nervosamente, não conseguia acreditar.

A dona da taverna abriu espaço entre as pessoas chocadas com a cena para ver o que estava acontecendo. A senhora velha, de aparência cansada e maquiagem borrada indignou-se:

"- Mas o que está havendo? Quem chama o nome da minha Dominique?"


A prostituta ruiva explicou-lhe o acontecido. A taverneira baixou os olhos e então levantou-os brilhantes de lágrima.

"- Como ousa sujar o nome da minha Dominique? - a senhora urrava entredentes. Já não lhe foi o suficiente ser desgraçada por um maldito que lhe jurava amor? Já não bastava ter sofrido por um amor impossível? Ainda tem que ter a cova morna remexida por uma maldita descontrolada que vem aqui para perturbar minha casa? Dominique apaixonou-se por esse boêmio maldito. E... Essa manhã... Encontrei-a... Deus... Ela se enforcou. Por causa dele! Deixou um bilhete... Mon petit Dominique..."


A senhora retirou o bilhete de dentro da manga do vestido vulgarmente puído. Atirou-o aos pés de Josefine, que mais parecia um animal acuado. Ela tensionou-se e pegou o bilhete amassado.







"Me desculpe meu amor, se lhe fiz mal. Siga sua vida, seja feliz com sua casta Josefine. Eu a invejo, porque ela é uma mulher de muita sorte. Ela lhe tem por inteiro, ela lhe tem como companheiro, como presença. Eu não tenho nada. Então... Seja feliz. Uma memória causa menos estrago do que uma saudade. Eu te amo muito, não me odeie."







Josefine saiu para a rua lamacenta, queria ar puro, queria morrer, queria matar. A cabeça rodava e ela gargalhava para a lua, insana, tresloucada. Girava com as mãos sujas erguidas em direção ao céu nublado de outono. Foi levada imediatamente para casa, uma senhora não podia ficar assim tão exposta! Foram chamados doutores de todos os lugares para curá-la do laconismo repentino e da letargia que a dominara. Finalmente foi levada para a Pensão Azul, lugar de loucos esquecidos, de onde desapareceu misteriosamente algum tempo depois. Nunca mais se ouviu falar do crime soturno da Rua Albuquerque. Josefine era mais uma anônima nas bocas fofoqueiras que aumentavam a história até que ela se parecesse um mito, e assim foi. A Lenda da Rua Albuquerque dizia-se. A doce virgem, enlouquecida de ciúme, sempre morre no final - afirmavam as velhas alcoviteiras.

"- Ainda bem que o espírito dessa moça libertou-se na graça de Deus, eu odiaria que ela nos perturbasse, ou que roubasse a fertilidade da terra..." - E todas faziam o sinal da cruz fervorosamente.






Dois anos depois, no vilarejo próximo comentava-se de uma nova e bela aquisição na taverna. Misteriosa, tinha os olhos brilhantes como duas pedras preciosas. Dominique, A Francesa, dizia-se. Linda, andava sempre com um punhal ferino no decote farto. Sedutora, ria insana quando lhe perguntavam o nome..."(J.)



Ayalla.
( e sim, o amor pode ser destrutivo)

4 comentários:

Pseudokane3 disse...

"- Eu te amo, não me odeie..."

Ultimamanete, este é o tipo de mensagem que mais envio para as pessoas, nem sempre com sucesso...

São tantos os erros, tantos os amores, tantos os ódios decorrentes, que não crêem mais em minhas desculpas...

Estás cobertas de razão... Tu e o J do texto... Tu e o tempo, que só substitui, contra a minha vontade...

Estamos irmanados nesta desgraça de assunto que é o Amor...

Beijo,

WPC>

Unknown disse...

Nem sei se pode ser destrutivo, mas pode ser destrutível.

Unknown disse...

Josefine, faltou-te algumas conversas com Diógenes e Menipo...

Anônimo disse...

Original em http://sabiasbobagens.blogspot.com/2007/07/josefine.html

=*