Quando eu me sentei na sala, nesta noite de sexta-feira,
para assistir a algum filme, a produção exibida na TV Brasil às 22h30’era para
mim completamente desconhecida. Minha primeira opção era um documentário sobre
um artista plástico brasileiro que seria exibido noutro canal, mas o exótico
título me chamou imediatamente a atenção: “Ajuricaba, o Rebelde da Amazônia”
(1977, de Oswaldo Caldeira). Em meio à pletora de fumaça de ‘crack’ que
inundava a minha residência e a comiseração relacionada ao que parece ser uma infecção
de sarna entre alguns membros (humanos e animais) de minha família, aquele
título despertava em mim alguma esperança: rebeldia era uma palavra bem-vinda
no contexto em que me encontrava!
Nunca ouvira na vida sequer falar deste filme, de modo que,
quando o mesmo começou, só identifiquei que se tratava de uma produção antiga
por causa dos defeitos de exibição na película. Pesquisei algo sobre ele e
descobri que fora realizado numa época produtiva de nosso cinema nacional,
tendo recebido prêmios de Melhor Roteiro e Melhor Fotografia em festivais cinematográficos
importantes, como o de Gramado e o de Brasília. Agora era definitivo: estava
com muita vontade de ver o tal filme!
Não precisei de muito tempo para estar completamente
inserido na trama, afinal contada de forma não-linear: se, no presente, um
carro de polícia conduzia ruidosamente para o necrotério o corpo baleado de um
bandido que assumia a alcunha indígena do título, na história definitiva do
filme, transcorrida no século XVIII, um grupo de bandeirantes portugueses escravizavam
alguns índios, dispostos a levarem vantagens comerciais sobre os holandeses
então infiltrados no Brasil, que conseguiram firmar pactos forçosos com algumas
tribos.
Por mais que os costumes fúteis e ambições intensas dos cortesãos lusitanos fossem mostrados, claramente se percebia que o filme era favorável ao
protagonista Ajuricaba (silenciosamente encarnado por Rinaldo Genes, que está ótimo),
internamente lancinado pelo que depois pude entender como uma traição: o índio discordara
de uma opção política (por falta de palavra melhor) equivocada de seu pai e,
após a morte do mesmo, ele se rebelou, disposto a tentar dirimir os danos
ocasionados pela sanha devastadora dos portugueses nas matas manauaras. A
narração discorria sobre lendas indígenas que versavam sobre quando “a noite se
casou com o dia e, desta união, nasceram o Sol, a Lua e o filho Sempre”. Mesmo
sem se pronunciar vocalmente, descobrimos, através de um ‘flashback’, o infortúnio
matrimonial de Ajuricaba e conhecemos mais um motivo para a arregimentação
ferrenha de seus desígnios de vingança. Os homens brancos temiam que o índio
pudesse se transformar em qualquer animal, conforme apregoavam as lendas
locais. A narrativa corrobora tais temores e lendas, de modos que assistimos a
sumiços fantásticos de Ajuricaba e a aparições suas como onças ou cobras. Internamente,
porém, sua alma permanecia devastada pela traição aos valores tribais. E ele
pula na água. Por mais que os portugueses temam que ele vire peixe e que o
protagonista branco do filme, um explorador orgulhoso que se gabava de nunca
ter perdido nenhuma luta e de matar urubus, gritasse que ele seria esquecido, o
filme toma partido do personagem-título. A realidade, porém, é mais cruel: por
mais que o nome de Ajuricaba batizasse vielas, mercados e até mesmo a rede
televisiva local, que transmite jocosamente a notícia de sua morte, os índios
são coadjuvantes em sua própria localidade. Descendentes de Ajuricaba lamentam
o vôo de uma periquita num estabelecimento de música brega. Por mais que o
corpo de Ajuricaba, no necrotério, dê sinais de que voltará à vida, a imagem
paralisada de um pedreiro indígena suado e exausto concede a tônica crítica do
filme: na vida real, os índios perderam. A História oficial, conforme contada e
repetida pelos brancos invasores, foi introjetada. Resta(-nos) rebelar-se!
Wesley PC>