sábado, 27 de novembro de 2010

A PAIXÃO OU UMA CAUSA:

“Saí da igreja louca de raiva e, para desafiar (...) todas as pessoas razoáveis e imparciais, fiz o mesmo que faziam as pessoas nas igrejas espanholas: mergulhei o dedo na tal da água benta e fiz uma cruz em minha testa” (Sarah Miles, 2 de outubro de 1945, em seu diário pessoal, conforme registrado em livro de Graham Greene)

A citação acima é importante antes de começar a escrever sobre o que vou começar a escrever: antes de assistir a “Fome” (2008, de Steve McQueen), fiz o tal sinal da cruz. Precisei me benzer antes de mergulhar num filme tão anunciadamente barra-pesada, sobre militantes do IRA que se submeteram a uma greve de fome fatal e definitiva no início da década de 1980. Morreram por uma causa, mas a causa permanece viva e inatendida, fazendo com que mais e mais pessoas morram por ela e, neste sentido, o trabalho directivo de Steve McQueen merece elogios tonitruantes: como é possível manter-se imparcial diante de um tema tão árduo e passional como este, mesmo sabendo o quão parcial ele era em seu apego militante? Só mesmo sendo muito inteligente para pôr em prática este sábio exercício de formalismo cativante!

Tendo formação prévia enquanto artista plástico, o diretor estreante entupiu seu filme com planos belos, mesmo lidando com secreções fétidas como merda, urina e vômitos em profusão. Além de fazerem greve de fome, os militantes presos que protagonizam o filme são constantemente espancados, fazem desenhos com bosta nas paredes de suas celas e, num momento mágico, um deles até se masturba com cautela sob os cobertores de seu colchão. Quando perguntado se ele acha que o que está fazendo é correto, o protagonista real Bobby Sands (magnificamente incorporado, em toda a sua inanição protestante, pelo autor teuto-irlandês Michael Fassbender) conta uma anedota mnemônica sobre o dia em que, ainda adolescente, ousou afogar um potro que morria de fome depois de ter suas duas pernas traseiras quebradas. E eu quis que um dia eu tivesse este nível de determinação: depois de espancado, ainda com o corpo repleto de sangue e feridas frescas, ele ousava sorrir. Tornou-se um exemplo imediato para mim!

Wesley PC>

TER-SE-IA DITO, BEM ANTES, QUE A MASTURBAÇÃO É UMA PRECE...

“Pelo Amor de Meu Amor”: este é o título brasileiro para “The End of the Affair”, filme que o artesão hollywoodiano Edward Dmytryk dirigira em 1955, com base no romance arrebatador de Graham Greene, “Fim de Caso” (1951), adaptado com primor novamente para as telas em 1999, sob a tutela directiva do irlandês Neil Jordan, que concedeu ao roteiro, escrito por ele mesmo, a honra de melhorar ainda mais ao livro, de elevá-lo ao paroxismo da Graça, entendendo-se este substantivo abstrato como derivativo não somente do amor humano, como também do amor carnal. Por isso, lendo agora o livro, não ouso recusar a idéia primeva de, quando se masturba pensando firmemente em alguém, o efeito psicológico é o mesmo que direcionar uma prece desesperada a Deus: o ato pode não surtir qualquer efeito (salvo a prazerosa e provisória satisfação solitária do desejo), mas é funcional muito mais enquanto ato do que enquanto meio para outro desejo, antecipado na procuração. A prece é uma punheta, em suma!

Arrebatado que fui – e que serei sempre – pelo amor a (mais de) um ser humano e pelo vigor da Glória Eterna e Infinita de Deus, comprei duas boas edições de bolso do livro magno de Graham Greene, na última noite de quinta-feira. Os únicos dois volumes disponíveis na loja em que eu estivera, mas que teriam que ser meus! Depois que eu paguei por um dos volumes, os funcionários da loja disseram que não seria possível encontrar o segundo, visto que “os clientes retiram os livros de seus locais apropriados” e que a busca tornar-se-ia infinda por causa disto. Mas eu precisava comprar o livro naquela noite! Eu precisava que ele estivesse nas mãos de um rapaz que não somente perturba (positivamente) meus sentidos como me re-encaminha em direção a Deus, a um Deus que pode não existir, mas que eu acredito como fogo, que queima e me restitui a mais dolorosa das pazes. Um Deus que me faz usar a palavra PAZ no plural, como eu nunca pensei que fosse possível. Um Deus que é amor supremo e superior a qualquer coisa que ele porventura tenha criado, “à Sua imagem e semelhança”. "O Deus", como diria a Clarice Lispector, e “eu preciso que o Deus venha”!

Consumindo o livro como se consumisse a água benta que escorreu do batismo erótico do ser amado, percebi que as diferenças entre o seu conteúdo metalinguisticamente literário e a versão fílmica que tantas vezes eu revi são mui significativas, mas eu não estou autorizado aqui a narrar. Não posso revelar nenhum detalhe deste romance sublime, sob pena de estragar o arrebatamento inevitável que advém de suas revelações pungentes – e, neste caso, bem que eu poderia ter escrito “revelações” com letra maiúscula inicial, para se assemelhar mais ao poder admoestador do livro bíblico do Apocalipse. É uma trama que surpreende, que arrebata, que mostra-nos o amor de uma forma tão intensa que, até mesmo assumida e perpetuamente apaixonado como eu me confesso, tendi a me sentir descrente! Tanto é que, ao invés de escrever a sua resenha após o término da leitura, resolvi adiantar-me e enfrentar a tentação. Faltam ainda 30 páginas da edição que possuo diante de meus olhos agora, mas já tenho a plena e reiterada certeza de que não posso revelar detalhes sobre ele. É um livro sobre a Descoberta, a maior descoberta que possamos fazer em vida, a Descoberta!

E, numa dada parte da trama, lemos o seguinte trecho: “Acredito que existe um Deus – acredito na história toda, não há nada em que não acredite. Poderiam subdividir a Trindade em 12 partes, que acreditaria. Poderiam desencavar registros que provassem que Cristo era uma invenção de Pilatos para se autopromover e, ainda assim, acreditaria. A fé se entranhou em mim como uma doença. Do mesmo modo como me apaixonei. Nunca amara antes como o amo e nunca antes acreditei em nada como agora. Tenho certeza. Nunca tive certeza de nada. (..) Lutei contra a fé mais tempo do que lutei contra o amor, mas não tenho mais forças”. Deus do céu, era eu falando através daquela personagem!

Insistindo, portanto, que sou incapaz de transmitir a empolgação religiosa, masturbatória, vívida, ultra-romântica e real deste livro em palavras, insisto também que não devo revelar detalhes sobre ele, mas sim suplicar que ele seja lido, consumido, para que, só assim, eu chegue perto de ser compreendido no meu afã amoroso diário. E, pensando agora em “Pelo Amor de Meu Amor” – cuja visão torna-se uma obrigação para mim – imagino o quanto o diretor Edward Dmnytryk teve que lutar consigo mesmo para levar às telas, tão precipitadamente, um romance tão ousado, cuja sexualidade iridescente e concomitante religiosidade questionada no âmago de sua totalidade crente não devem ser aspectos ousados visto com olhos aceitantes pelos produtores da época. Como é que ele conseguiu esta proeza? Tenho que conseguir este filme!

“O que se pode construir no deserto? Às vezes, depois de um dia em que fizemos amor várias vezes, imagino se não é possível chegar ao fim do sexo, e sei que ele imagina o mesmo, com medo daquele ponto onde começa o deserto. O que vamos fazer no deserto se perdermos um ao outro? Como se continua a viver depois disso? [...] Se uma pessoa pudesse acreditar em Deus, será que encheria o deserto?”

Deus!

Wesley PC>

MAIS UMA PARÁBOLA SOBRE O CORAÇÃO PARTIDO E A MORTE DAÍ DECORRENTE, A MORTE QUE PRESERVA A FELICIDADE ALHEIA: “DEUS, OH, DEUS, MISERICORDIOSO DEUS”!

Arlindo Machado, em seus livros sobre cinema pós-moderno e questões do gênero, faz questão de frisar, mais precisamente em “Pré-Cinemas e Pós-Cinemas”, o quanto lhe pareceu benfazeja a regravação do protegido de D. W. Griffith, Christy Cabanne, para “Enoch Arden” (1915), média-metragem adaptado de um poema romântico de Alfred Lord Tennyson, que já havia sido levado às telas em 1908, sob o título “After Many Years”, quiçá mais literal, mais imediato no que tange aos efeitos do drama. Vi a segunda versão na manhã de hoje e, glupt! Eu sei, eu sabia, eu saberei...!

A trama não poderia ser mais incisiva em sua exposição prosaica: dois homens amam uma mesma mulher. Ela só poder amar um (ou, pelo menos, só pode demonstrar socialmente que ama um deles). Contrai matrimônio com o pretendente escolhido, enquanto o outro chora. se lamenta e espera. Espera pelo quê? Não sei, espera... Muitos anos depois, o marido escolhido parte numa viagem marítima em busca de fortuna. Sua embarcação naufraga, ele queda-se desaparecido por anos a fio, seus filhos crescem e, após a insistência diuturna do abandonado ainda apaixonado, a esposa fiel casa-se novamente. E, um dia, o náufrago retorna...

Incrível como poder haver tanta poesia, tanta paixão, tanta religiosidade (porque, sim, cada vez mais me convenço que amor é sinônimo de religião) num filme mudo com menos de 40 minutos de duração. E, enquanto eu lia uma obra-prima de Graham Greene e ouvia Coldplay no rádio, era como se todos soubessem o que eu estava a sentir diante daquela maravilha cinematográfica. Mas eu estava só. Ou, ao menos, me via como tal. Por favor, vejam este filme, vejam este filme. Ei-lo aqui!

Wesley PC>

A CENA QUE EU TEMIA TER PERDIDO:

Conforme eu lamentei anteriormente, cheguei atrasado à sessão de “O Amor em 5 Tempos” (2004, de Francis Ozon). Conclusão: perdi o primeiro dos 5 momentos de romance regressivo do casal formado por Valeria Bruni Tedeschi (maravilhosa!) e Stéphane Freiss, justamente quando eles fazem sexo sem amor, à beira do divórcio. Por sorte, entretanto, cheguei a tempo de presenciar este belíssimo momento cinematográfico em que marido, mulher e o namorado do irmão do primeiro dançam sensualmente ao som de uma canção italiana, depois de um deles confessar que já praticara bissexualismo numa orgia. Uma cena tão simples e bonita, mas que me trouxe à mente tantas e tantas lembranças, vivenciadas aqui/ali mesmo, em Gomorra. Por causa de sensações como esta, queria que todo mundo no mundo visse este filme. Iria ajudar tanta gente, meu Deus!

Wesley PC>

“NOTHING’S FINE, I’M TORN”!

Saí do trabalho agoniado hoje: estava a gravar um DVD demorado e tinha que estar em casa às 21h em ponto, pois queria ver o filme do François Ozon que seria exibido na TV Cultura, “O Amor em 5 Tempos” (2004), sobre um casal que se divorcia e que se amou. Em outras palavras: é um filme que começa pelo fim de um casamento e vai retrocedendo até o primeiro encontro idílico do casal, sem que isso pareça formulaico e sem que a montagem utilize-se de recursos demasiado óbvios para marcar onde começa uma fase da estória e onde termina outra. Lindo filme! Saí da sessão emocionado, mesmo tendo perdido os 20 minutos iniciais.

Terminada a sessão, porém, uma canção bacana que não ouvia faz tempo ficava martelando em minha cabeça: “Torn”, da Natalie Imbruglia. Já falei dela e do ótimo videoclipe que emoldura esta postagem aqui, mas sempre fica a impressão que tenho muito mais a acrescentar. Neste exato momento, a faixa 04 do disco (“Leave Me Alone”) está sendo executada, sendo que a canção que vem a seguir (“Wishing I Was There”) é uma de minhas favoritas da cantora. Voz bonita, letras caprichadas, aquele clima de fim de relacionamento que foi tão bom enquanto durou... Mais ou menos que nem no filme. Ai, ai...

Pensei que não tivesse falado ainda sobre mais uma das experiências farsescas mais conturbadas de minha naufragada vida romântica, o pseudo-namoro que vivenciei com uma Testemunha de Jeová em 1997, cuja mãe só permitia que ficássemos juntos se eu me convertesse à religião delas. E eu não quis. A congregação era formada por gente vaidosa e hipócrita. Não me senti acolhido. Mas a mensagem escrita desta mocinha, hoje bem-casada, felizmente, jamais saiu de meu caderno. Ontem mesmo, inclusive, flagrei-me lendo suas palavras emocionadas de mulher apaixonada. Apaixonada por mim, olha só. Quem diria... Será que ela hoje me considera tão mentiroso quanto o home que o eu-lírico abandonado da canção amara?

“I'm all out of faith. This is how I feel
I'm cold and I am shamed, lying naked on the floor
Illusion never changed into something real
I'm wide awake and I can see the perfect sky is torn
You're a little late. I'm already torn


Perfeito este refrão! E tem muito mais de onde veio este...

Wesley PC>

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

“EU VOU BEBER PRÁ ESQUECER MEUS PROBLEMAS”...

Mas, se eu fazer isso, terei um novo problema para resolver: a difícil libertação da bebedeira. Foi apenas um pensamento rápido, antes de ser racionalmente tachado de insuportável e de me aventurar pelas armadilhas narrativas de mais um daqueles filmes ‘gays’ quase insuportáveis que tendem à guetificação como se isto fosse algo meritório. Tratava-se de “Dog Tags” (2008, de Damion Dietz), sobre um rapaz atormentado por não conhecer seu pai que se alista no exército e descobre que sua esposa é amplamente infiel. Numa caminhada solitária pelo deserto, ele é convocado a fazer um teste como ator pornográfico, mas logo desiste. Seu suposto companheiro de cena, afetado e entupido de maquiagem, lhe oferece carona e eles se tornam amigos e, depois de algumas decepções compartilhadas, amantes. Parece a coisa mais normal do mundo, não é? Como sempre, a inverossimilhança sentimental define o tom da narrativa: o entorpecimento que este tipo de filme provoca é tão deletério quanto submeter-se ao alcoolismo com intuitos obliteradores. Por isso, ajo de bom tom em recordar a mim mesmo que, se sou tachado a torto e a direito de “insuportável”, devo ter dado motivos a outrem para tanto. Chuif! E, de coração, este subgênero ‘gay’ a que me submeto a analisar agora realmente me dá nos nervos – num sentido arduamente negativo do termo.

Eu vou beber pra esquecer meus problemas (bebe negão)
Eu vou beber pra esquecer minhas dívidas (bebe negão)
Eu vou beber para escecer minhas angústias (bebe negão)
Eu vou beber que hoje eu quero alegria
(meu Deus, ó, meu Deus) (bebe negão) ( Ò, meu Pai !) (bebe negão)”

Assim canta Renato Fechine et alli. (sic)

Wesley PC>

AO SOM DO KHALED, SOLICITO PERMISSÃO PARA LANÇAR UM CLICHÊ:

Nada sou e nada tenho, mas é na simplicidade de meu nada que eu te ofereço tudo”!

A quem pertence esta frase-chavão? Uma amiga do 1º ano do 2º grau escreveu isso em meu caderno da época e, dia desses, ao folheá-lo, percebi que concordo deveras com esta frase, que sinto vontade de dizer isso para alguém, por mais clicheroso que seja, visto que, como eu sempre digo e repito, “clichês são apenas verdades que foram repetidas muitas vezes”. E, no mundo de hoje, infelizmente, verdade se desgasta muito rápido. “Didi, didi, didi didi zeen iddiwaah/ Didi waah, didi, didi deedi ha zin el daryag”...

Wesley PC>

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

PARA ONDE FOI A VEROSSIMILHANÇA PLATÔNICA DOS FILMES ‘GAYS’?!

Na minha época, homossexuais adolescentes consolavam-se de suas tristezas e impossibilidades matrimoniais vendo filmes tristes e bonitos em que, na melhor das hipóteses, o ser que deseja e o inalcançável ser desejado abraçavam-se ao final, coroando a nódoa de um amor impossível com a saudável bênção da amizade. Hoje em dia, mal os personagens se conhecem, vão logo tirando a roupa e se chupando, por mais inverossímil e inaplicável que isto possa ser na realidade social dos espectadores. Acabo de ver um filme sobre o qual nada conhecia e constatei esta mudança de valores fílmicos mais uma vez: hoje, fode-se!

Escolhi “Dream Boy” (2008, de James Bolton) para me entreter no horário de almoço de maneira completamente randômica. No começo da trama, o protagonista Nathan, cristão fervoroso, muda-se com pai e mãe para uma cidadela do interior. No primeiro trajeto para a escola, apaixona-se pelo motorista, heterossexual e comprometido. Para minha surpresa, negativa, no primeiro momento em que os dois rapazes ficam a sós, eles se agarram, se beijam, abrem o zíper um do outro e se chupam. Nada contra o livre-arbítrio sexual das pessoas, mas, enquanto momento romântico, a cena definitivamente não me convenceu. Pior: à medida que o roteiro evolui, descobrimos que um dos garotos é sexualmente molestado pelo pai, um rapazinho homofóbico estupra e assassina outro, estórias de fantasmas contadas à beira da fogueira materializam-se na forma de um avantesma pederástico recém-falecido. Os atores são apáticos, a direção é frouxa, o enredo é patético, mas a trilha sonora original de Richard Buckner é muito boa. Vou ver se encontro para baixar e rememorar os poucos bons momentos do filme (“Toque-me. Tu te importas se eu não fizer o mesmo contigo?”). Foi-se o tempo em que havia sinceridade nos filmes mercadologicamente ‘gays’... Foi-se o tempo em que consolo para paixão platônica estava atrelado a sobejo de atividades empregatícias... Foi-se o tempo?

Wesley PC>

NA MINHA ÉPOCA, VIRGINDADE VALIA ALGUMA COISA...

“Aníbal sentiu que devia fazer qualquer coisa. Sabia o que faltara e o que faltava. Dar-lhe ternura, para apagar a primeira má impressão que iria acompanhar a vida dela. Mas estava demasiado cansado. Nem o corpo jovem o excitava agora. A mão no ventre dela não tinha calor, acariciava apenas mecanicamente, pelo sentido intelectual dum dever.

- Vês? Não sou só eu que tenho o direito de me desiludir. Também tens o direito à desilusão, é o único direito real que temos.
- Não percebi. Mas não falaste para mim, pois não?
- Tens razão, nunca falo para os outros.

Ficaram deitados, lado a lado, a mão dele parada por cima do ventre dela. Muito tempo. Depois ela levantou-se, olhou a cama, disse:

- Há sangue no lençol.

Ele não respondeu. Nina devia saber era normal ou não estava informada? Ele sentia dever uma explicação, uma fala qualquer, não para ensinar, apenas para estabelecer um contacto humano. Ela pôs a blusa e a saia. Ficou quieta, muito tempo, contemplando-o, esperando certamente algo mais. Uma palavra de carinho, pelo menos. Ele não mexia.

- Amanhã vou com Mateus.

Saiu do quarto. Ele sentiu-a bater a porta da rua. Vais só desgraçar a vida, pensou. E eu não posso fazer nada”.


Trata-se de um dos diálogos finais do nono capítulo de “O Polvo” (1982), terceiro trecho do extraordinário romance angolano “A Geração da Utopia”, de Pepetela, mas esta dolorosa situação em que uma afoita mulata é deflorada por um amargurado guerrilheiro bem que poderia ser a resposta ficcional que eu teria dado àquele menino bonito e com olhos semicerrados quando este me perguntou:

"Tu és pessimista? Não, não é?”

Mas não foi o que eu disse. Cheguei em casa, tomei um copo de sorvete de flocos e tentei assistir ao filme pornográfico “Debbie Does Dallas” (1978, de Jim Clark) na íntegra. Aos 60 minutos de duração, eu já estava enfadado. Faltavam ainda 20 minutos para o filme acabar. Levantei para beber água e o DVD parou de funcionar. Não vi o final. Quase ouso dizer que não quis realmente ver. Mas preciso saber como termina o filme...

Na trama – se é que se pode dizer isso – a protagonista deseja participar de um concurso de líderes de torcida, mas não tem dinheiro para viajar. Arranja emprego numa biblioteca, mas é flagrada fazendo sexo oral com um dos namorados. Seu patrão a repreende, leva-a para sua sala e dá tapinhas em sua bunda. E ela goza e consegue o dinheiro que precisa. Homens feios, trilha sonora ruim, cenas de sexo artificiais, trama insuportavelmente inverossímil. Péssimo filme. E eu lamentando (a perda de) uma virgindade acima ou abaixo de qualquer taxonomia...

Wesley PC>

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

“EU QUERIA SER UM TEIÚ”...


Pergunta 1: uma pessoa recém-abalada por um falecimento familiar teria forças para chorar diante do filme “Gente Como a Gente” (1980, de Robert Redford)?

Pergunta 2: uma pessoa que acabara de enfrentar uma demorada crise de riso ainda disporia de forças para gargalhar diante do divertido “Se Beber, Não Case” (2009, de Todd Phillips)?

Pergunta 3 (a definitiva): uma pessoa que se masturbou depois de causar uma fluente ejaculação num jogador contumaz de corridas automobilísticas eletrônicas disporia de forças para se excitar diante de um filme pornográfico oitentista sem o auxílio gastronômico de uma tigela de sopa com azeitonas?

Resposta genérica às três perguntas: quando uma itabaianense me disse que seria ser um teiú para não ouvir as barbaridades idiomáticas proferidas numa reunião para fiscais de concurso, não se ó obrigado a saber que os lagartos da família dos teídeos são surdos.

Wesley PC>

terça-feira, 23 de novembro de 2010

“SE VOCÊ ENTENDE O QUEEN/ ENTÃO ENTENDE O TOTALITARISMO” (Milan Frez, vocalista)

Não sou um especialista em música industrial eslovena, mas considero a banda Laibach uma das melhores, se não a melhor, banda de ‘rock’ protestante do país. Dediquei o dia de hoje ao ouvir repetidas vezes ao ótimo e estranho álbum “Opus Dei” (1987), o mais conhecido da banda, e, de coração, fazia tempo que eu não percebia um uso tão político da pletora de idiomas. Sabe aquilo que o Quentin Tarantino quis transmitir através do extraordinário protagonista vilanesco de seu equivocado “Bastardos Inglórios” (2009), no que tange à autoridade sobressalente de um poliglota? Pois bem, os petardos em alemão e em inglês deste disco confirmam as impressões bem-sucedidas que este filme deixou em nós, para além de seu declínio roteirístico vingativo: se a faixa de abertura “Leben heißt Leben” (que volta reconvertida em inglês na faixa 05, homônima do disco) é mui pungente em seu arrebatamento wagneriano, como bem disse um crítico, as execuções de “Geburt einer Nation” (regravação de um sucesso da banda inglesa Queen, faixa 02 do disco), do hino gutural “Trans-National” (faixa 06) e do mantra enérgico “"Jägerspiel" (faixa 10, relançamento ampliado) faz com que eu reitere meu voto: Laibach como melhor banda de ‘rock’ eslovena já!

“Wann immer wir Kraft geben
geben wir das Beste
all unser Koennen, unser Streben
und denken nicht an Feste

Und die Kraft bekommen alle
wir bekommen nur das Beste
wenn jedermann auch alles gibt
dann wird auch jeder alles kriegen
Leben heisst Leben!”


Wesley PC>

UM FILME ABAIXO DO SEU TEMPO?

Quando nos perguntam sobre o cinema soviético dos anos 1930, que cineastas nos vêm à mente? Sergei Eisenstein, Lev Kuleshov, Vsevolod Pudovkin e companhia de propaganda socialista Ltda.. Em 1934, inclusive, 12º ano do mandato ditatorial de Josef Stalin, o inventivo cineasta Dziga Vertov realizou seu laudatório “Três Canções Para Lênin”, filme que, no plano da exacerbação discursiva, fica pouco a dever ao posterior “O Triunfo da Vontade” (1935, de Leni Riefenstahl), por exemplo, com a diferença de que a obra-prima nazista é muito superior.

Pois bem, imbuído de um espírito acidentalmente perscrutador, assisti, na tarde de hoje, meu dia de folga, ao filme soviético menos conhecido “O Tenente Kije” (1934), de um tal de Alexander Feinzimmer. No filme, baseado num romance sarcástico do roteirista Yuri Tynyanov e musicado pelo genial Sergei Prokofiev, um erro de grafia num documento oficial do czar Pavel I (século XVIII) faz com que um militar inexistente seja culpado de erros e hipocrisias não têm a coragem de assumir, é laureado depois de uma manobra infundada na Sibéria, casa-se com a promíscua filha do czar (vide fotografia ousada, surpreendente para o cinema da época, penso) e falece e é enterrado com honras de Estado, até que o despótico e mimado czar volta atrás e o reduz a um mero cidadão civil, de maneira que sua “viúva” sente-se liberada para beijar e se entregar sexualmente a quem quiser. Contando assim, até parece que o filme obteve êxito em suas denuncias anti-burocráticas (como é que a censura stalinista permitiu a sua realização?), mas, na prática, os exageros cômicos e a gagueira inverossímil dos personagens desperdiçam as ótimas piadas durkheiminianas do mesmo. Pena... Cochilei na primeira tentativa de vê-lo, mas, quando despertei, percebi que o problema não era comigo, mas com o filme em si.

O que me conduz de volta a uma discussão que tive com um colega de trabalho, quase formado em História, sobre haverem ou não pessoas que estão “à frente do seu tempo”. Segundo ele, a expressão é totalmente equivocada, visto que, o que realmente existe são “pessoas que pensam e agem, quando possível, de formas diferentes do que é recomendado em sua época, não querendo se enquadrar a um estilo de vida dominante”. O exemplo de sua mãe, insistente consumidora literária num contexto rural em que a mesma fora criada para ser mais uma mera parideira, caiu como uma luva para a correção expansiva e muito bem-sucedida de sua argumentação inicial. E, se eu pudesse passar este filme para ele agora, nosso cotejo artístico-político-cultural-social-discursivo entre as noções de vanguarda e retaguarda históricas seria de muitíssimo bom tom... Que fique registrado aqui o convite amplo a quem quiser participar do debate: possuo uma cópia em formato -dvix de “O Tenente Kije” (legendada em inglês) em casa. Se alguém se interessar...

Wesley PC>

A CADA DIA QUE PASSA, EU TENHO MAIS CERTEZA DESTA IMPRESSÃO: OS SINTOMAS DA ESTAFA FÍSICA E DO ARROUBO PASSIONAL SÃO QUASE IDÊNTICOS!

Não é de hoje que eu anseio por ver “Comportamento em Classe” (1984), dificilíssimo filme de Jean-Marie Straub & Danièle Huillet baseado numa novela inacabada de Franz Kafka. Cheguei a ver quase meia-hora de projeção, mas, como estava muito cansado em razão do dia estafante que tive e como a legenda em inglês do mesmo estava dessincronizada, dormi. Dormi e despertei com o mesmo sentimento de desamparo potente, com a mesma impressão de que não estava sendo sequer infinitesimamente dramático no que tange à demonstração de todo afeto que sinto por outrem. Que sinto por outrem. Que rapaz bonito este da imagem! Que gesto tão forte este, aliás: o gesto de calar alguém à força. Como se consegue isso?!

Numa das belas e estranhas cenas do filme que tive o prazer de ver até então, um suposto contratador do imigrante protagonista paralisa a si mesmo enquanto ouve o Hino Internacional Socialista. E o meu telefone tocava: era uma vizinha, pedindo que eu a ensinasse a gravar DVDs evangélicos para outro vizinho. E eu querendo dizer o que sentia... “Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”. E, na casa da vizinha, encontrei um prato de batatas-fritas e um DVD com o filme “Os Trapalhões na Guerra dos Planetas” (1978, de Adriano Stuart). Confundi-o com outro filme infantil e corri para vê-lo. Uma das piores obras audiovisuais já realizadas na História, que só não leva o zero completo por causa de uma piada interessante perto do final: “por que tu queres ficar aqui, sozinho, neste planeta? Por causa de uma mulher?! Vamos para a Terra. Se brincar, lá tem mais mulher do que gente(risos). Merece um décimo por causa disso!

E quem disse que os sintomas vão embora?

Wesley PC>

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

ESTÓRIAS DO DIA POSTERIOR:

OK. Dormi. Acordei. Meu irmão mais novo avisou-nos da hora: “já vão dar quase 7 horas!”. Eram ainda 5h30’ da madrugada. Para não perder a hora, achei melhor levantei. Adormeci ao som de “Ocean Rain” (1984), obra mais cultuada do Echo & the Bunnymen. Despertei ao som de “Devotional Songs” (1992), do paquistanês Nusrat Fateh Ali Khan. Recebi uma pauta de umbanda ao chegar à sala de aula: terei que entrevistar a dona de um terreiro no bairro Inácio Barbosa. Daí, minha mãe me telefona: “e o dinheiro do PIS, Wesley?!”. E eu senti fome. Não tive tempo suficiente para comer o macarrão que minha mãe me enviara na lancheira... Hoje não estou com vontade de escrever!

“Under blue Moon I saw you
So soon you'll take me
Up in your arms
Too late to beg you or cancel it
Though I know it must be the killing time
Unwillingly mine”


Mas eu escrevo mesmo assim – e a família Castro agora está de posse de um novo ferro elétrico, marca Britania, comprado por R$ 40,00 nas Lojas Americanas, com um ano de garantia, caso dê defeito. R$ 5,00 a mais para ter garantido este último direito do consumidor. Minha mãe estava com fome, meu irmão estava com fome, eu devia um botijão de gás à vizinha paraibana. Pedi para minha mãe pagar e já liguei cobrando.

“Fate
Up against your will
Through the thick and thin
He will wait until
You give yourself to him”


Pelo menos, meu irmão caçula já se banhou depois da imundície de ontem... E, quando perguntado se estaria disposto a trabalhar nos três turnos da próxima quarta-feira, meu interlocutor disse “SIM”. E eu achei engraçado. Dezembro está chegando. E Echo & The Bunnymen é bem melhor pelas influências que legou às atuais bandas melancólicas do Reino Unido do que pelo que representa em si mesmo, mas “Ocean Rain” é um disco fofinho, com uma capa belíssima, que antecipa muitas das sensações tétricas que suas canções inspiradas podem incutir...

Wesley PC>

UM POUQUINHO DE EVASÃO, SÓ UM POUQUINHO...

Esqueci de acrescentar um detalhe essencial na postagem anterior, no que tange ao inabalável amor que os cachorros sentem por seus donos: meu irmão caçula jazia estatelado no chão, nu, sujo de merda, vomitando quase ininterruptamente desde às 13h (eram 17h quando eu terminei de ler o livro) e duas cadelas deitavam-se solenemente sobre suas costas. Pensei em tirar uma fotografia, mas como minha mãe grunhia de raiva e indignação, achei que não fosse de bom tom, ao menos, naquele momento. Há pouco, quase 2h da madrugada, meu irmão despertou, já levemente sóbrio e liberto dos impulsos eméticos, e me chamou para verificar a quantidade absurda de carrapatos que havia sobre sua cama. Uma crise se instaurou: o que é que eu faço?! Não consigo matar sequer estes seres parasitários...

Cedi a minha cama a ele, ainda bastante sujo, visto que não tomara banho desde que chegara em casa, e já se deitara no chão do banheiro, no chão da cozinha, no chão da sala, sobre seu próprio vomito, sobre o cocô dos cachorros, etc.. No momento em pauta, eu ouvia “The Killing Moon”, clássico depressivo da banda pós-punk britânica Echo & The Bunnymen. Acabara de ver “El Bola” (2000, de Achero Mañas), belíssimo filme espanhol ‘pop’ sobre um garotinho constantemente espancado pelo pai, que, um dia, encontra um amigo, alguém que o leva para se divertir num parque de diversões, num contexto social repleto de AIDS, tatuagens e sugestões bem-intencionadas de bissexualismo. A vida real me faz evadir dos filmes tristes que vejo. Ou seria o contrário? Ou vivo eternamente nesta ciranda? Daqui a pouco, acordo e terei novas estórias para contar... Dormirei na cama de minha mãe hoje – e meu irmão desempregado pensa em comprar um ventilador!

Wesley PC>

domingo, 21 de novembro de 2010

“Ó GIRA! Ó GIRA! Ó GIRA!”



“FINDEI AGORA O CAPÍTULO 201, O ÚLTIMO. O LIVRO HIPNOTIZOU-ME, [...]! ANTEVI O MEU PRÓPRIO FIM... SINTO CULPA? SINTO VERGONHA? SINTO QUE, SE SOU AGORA FELIZ, DEVO-O A TI”!



(...)



Meus últimos centavos de crédito telefônico foram destinados ao envio desta mensagem, compungido que eu estava por conhecer há tanto tempo a sinopse do livro batizado como “Quincas Borba” (1891), de Machado de Assis, mas que, quando consumido, revela uma pletora psicológica e social de personagens muito mais rica que a já surpreendente duplicidade do título. Se não perfeito, digo do livro: absolutamente genial!

Abusando da metalinguagem ainda mais do que ele próprio nos acostumara, o autor deste belíssimo romance lembra-nos que um dos personagens-título já surgira num romance anterior, aquele que merece a alcunha, não de todo precipitada, de “o melhor que Wesley já lera até então”. Este, aliás, destila, ainda no início, quando vivo, os fundamentos de sua crença no Humanitismo, doutrina que visa o equilíbrio da Natureza, mesmo que esta se parca cruel quando precisa exterminar uma tribo inteira para que uma outra tenha acesso a uma plantação salvaguardadora de batatas. “Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”, está lá no capítulo VI, mas torna-se ainda mais sub-repticiamente explícita (se me permitem o oxímoro, caros leitores) no capítulo XC, onde lê-se: “Oh! Precaução sublime e piedosa da natureza, que põe uma cigarra viva ao pé de vinte formigas mortas, para compensá-las”. E, quando estava eu ainda a me recuperar da genialidade desta passagem exemplar, acrescenta o autor, sem demora, em relação ao que anteriormente lemos: “esta reflexão é do leitor. Do Rubião não pode ser. Nem era capaz de aproximar as coisas, e concluir delas – nem o faria agora que está a chegar ao último botão do colete, todo ouvidos, todo cigarra... Pobres formigas mortas!”. E Rubião, para quem ainda não sabe, é o verdadeiro protagonista do livro, aqui já em começo de loucura terminal, apaixonado que estava por uma mulher casada.

O que mais me espantou neste romance tão tardiamente – mas ainda a tempo – lido é que não há apenas um púnico protagonista. Além do citado Rubião e dos dois personagens-título (um filósofo insano e seu cachorro devoto), as personagens secundárias que apareciam à medida que os capítulos evoluíam galgavam também status de protagonistas, visto que a instância narrativa respeitava-as em igual medida de onisciência. A benevolência de D. Fernanda, por exemplo, cativou-me por completo, dada a postura sinceramente altruísta que ela devota a Rubião, com quem não tinha nenhum grau de parentesco, depois que descobre que este enlouquecera em razão de uma paixão mal-curada e mal-vazada. Por isso, disse eu que antevira neste romance o meu próprio fim... Oxalá Deus me resguarde uma mecenas de saúde tão benevolente...

Mas o livro segue adiante e seria de todo injusto que eu desgastasse os leitores com toneladas e toneladas de citações apaixonadas (se bem que já o fiz neste e noutros ‘blogs’), mas peço encarecidamente o perdão de quem quer que seja para transcrever aqui na íntegra o capítulo CCI do livro, o derradeiro, aquele que eu citei na mensagem enviada ao moço que sugeriu que eu o lesse, visto que não conseguira se identificar na leitura:

“Queria dizer aqui o fim de Quincas Borba, que adoeceu também, ganiu infinitamente, fugiu desvairado em busca do dono, e amanheceu morto na rua, três dias depois. Mas, vendo a morte do cão narrada em capítulo especial, é provável que me perguntes se ele, se os eu defunto homônimo é que dá título ao livro, e por que antes um que outro, - questão prenhe de questões, que nos levariam longe... Eia! Chora os dois recentes mortos, se tens lágrimas. Se só tens riso, ri-te! É a mesma coisa. O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos homens”.

E, mal terminara eu de ler este trecho sublime, o reli. Relido, o treli. E, quanto mais o fazia, mais era pungido pela perfeição (aí, sim, termo que cabe muito bem a este desfecho) do estilo de seu autor. Machado de Assis surpreende-nos sempre, por mais que creiamos ter desvendado os mistérios de seus romances anteriores e posteriores. E, se aqui ele me fez tremer com a coincidência do garotinho que tacha Rubião de “gira” – ou seja, louco – depois de, dois anos antes, ter sido justamente salvo de um atropelamento mortal por ele (para ficar em apenas um exemplo, aquele tão bem descrito no capítulo CLXXXII), tenho a plena e convicta certeza de que ainda me surpreenderei deveras ao embrenhar-me neste universo de encantos infindáveis que atende pelo nome de Literatura.

À guisa de conclusão deste relato, um sopro adicional de realidade: poucos minutos depois que enviei a mensagem de celular acima transcrita, recebi uma resposta de meu apaixonante interlocutor: que bom para você...”. Ceifada de sardônicas intenções que ela possa ter sido escrita, não posso me furtar a uma confissão reiterada – e ainda a ele direcionada: se estou feliz agora, exatamente agora, neste exato e fugidio instante, é por causa de ti, de ti e de ti!

Wesley PC>

O FECHAMENTO DA ÍRIS DA CÂMERA ENQUANTO ABERTURA PARA A VIDA:

Eu e meus amigos cinéfilos regozijamo-nos sempre que vemos um filme de François Truffaut, o cineasta do amor difícil”, porque este se vale como ninguém mais, em toda a História do Cinema, de um simples recurso de gramática cinematográfica (o fechamento da íris da câmera) para demonstrar ‘ad infinitum’ o quanto ficara impressa na alma dum dado personagem a paixão que sentira por alguém. Vemos isto no curta-metragem “Os Pivetes” (1957), quando os garotinhos peraltas do título perseguem mulheres que pedalam em bicicletas apenas para verem suas saias voares; vemos isto em “Os Incompreendidos” (1959), sempre que o inocente protagonista depara-se com algo que atrai a sua atenção amorosa de garoto; vemos isto em “Jules e Jim – Uma Mulher Para Dois” (1962) em quase todas as cenas protagonizadas por Jeanne Moreau; vemos isso em “Fahrenheit 451” (1966) quando sentimos que uma dada personagem fala algo diferente daquilo que pensa ou sente; vemos isto em “A História de Adéle H.” (1975) quando a instância narrativa informa-nos que a personagem real sobrevivera a seu amor proibido e morreu bastante idosa (e sozinha), depois de seu objeto de desejo; vemos isto em “A Mulher do Lado” (1981) quando o amor, mesmo adúltero, mostra-se mais forte, letal e potente que qualquer convenção moral, social ou religiosa...

Poderia passar aqui dias inteiros a citar exemplos desta genial e poética corruptela truffautiana de um dos traços característicos mais egrégios do cinema mudo, mas minha cena preferida de seus filmes está na obra-prima de suas obras-primas, “Duas Inglesas e o Amor” (1971), quando uma das irmãs protagonistas, assolada na juventude pelas condenações interditas da masturbação e na velhice pelo arrependimento contumaz de não ter se entregado ao homem que amava, levanta o tampão que leva ao olho doente e percebe que o seu ideal romântico supremo está sentado diante dela, na mesa de almoço ora posta. No contracampo, o rosto do ser amado fechado em íris. Não tenho certeza de que foi exatamente assim, visto que não consigo descrever com riqueza de detalhes a decupagem da cena, mas, no plano emocional, esta é uma das imagens que reluzirão no instante final de minha vida, quando eu estiver a cerrar os olhos , em recebido da morte acolhedora, que recebe a todos com igual fervor. Se François Truffaut estivesse vivo ainda, ele gostaria de ter me conhecido, penso. E, como tal, sinto-me aqui no direito de servir-me de seu traço estilístico mais consagrado. Amo François Truffaut. Amo a vida. Amo o amor ‘per si’, por mais “difícil” (ou impossível) que ele me apareça!

Wesley PC>