Uma canção que ouço com muitíssima freqüência nos últimos
dias tem como verso-chave a seguinte admoestação: “ou você cede as rédeas ou morre com suas convicções". Na letra da canção, este verso
desempenha uma função bastante específica, mas, isolando-o, agarrei-me a ele
com afinco antes de me dispor a pisar num local que jurei não pisar tão cedo,
com o intuito de assistir a uma representação teatral que me interessava por
motivos bem pessoais: alguém que conheço (e aprendi a gostar com muita
facilidade) atuava nela. Valia a pena enfrentar uma autoproibição por isso!
A peça em pauta tinha como título “Itanhy – A Morte Antes da
Alma” e a sinopse disposta num caderno promocional a que tive acesso descrevia
a mesma da seguinte forma: “a peça, de temática universal, tem ambiência local,
ao retratar também a luta entre as forças políticas transpostas do campo para a
cidade, que te, no bairro Siqueira Campos, em Aracaju, a concentração da classe
e da luta operária”. Eu sei: prejudica muito mais do que incita, mas sentei-me
na platéia disposto a aceitar de bom tom o que viesse. Meu coração estava
aberto: não queria me predispor enquanto crítico rabugento de província!
Por não ser um conhecedor profundo de teatro, antecipo-me em
dizer que não assisti às demais peças do autor Hunald Fontes de Alencar (“Castrum”
e “Cárcere de Outono”), com as quais não apenas a sinopse diz que “Itanhy – A Morte
Antes da Alma” forma uma espécie de trilogia como também foi graças a ela que
uma amiga apressou-se em externar decepção que o que vira imediatamente após o
encerramento do espetáculo: segundo ela, os trabalhos prévios do autor são
muitíssimo superiores. Eu não os conheço, ater-me-ei ao que vi nesta noite de
sábado:
No palco, composto basicamente por paredes pretas e alguns
caixotes de madeira com funções objetais diversas, três atores revezavam-se em
diversos papéis: Paula Auday, que interpreta uma mãe de família com carregado
sotaque nordestino e uma professora de piano vinda do interior; Kassem, que
vivifica o filho de um grande industrial/empresário, um pai de família
comunista e um torturador encapuzado; e Allan Jones Mariano, também responsável
pela trilha sonora, que representa um único personagem, mas em diversas etapas
cronológicas. Na trama, o filho de um proletário desenvolve uma amizade
tendente à dissolução classista com o filho de seu patrão. Ambos costumam
estudar juntos: enquanto um é habilitado em literatura, o outro é perito em
matemática. Um quer ser artista, o outro ganhar dinheiro. Ambos concordam que
os poemas são bons “para comer as menininhas”, mas, com o passar do tempo,
apaixonar-se-ão pela mesma mulher. E pugnarão fatalmente, não apenas por isso,
mas por causa de suas divergências políticas irreconciliáveis: um quer pagar o
outro para escrever os seus discursos hipócritas. O outro acredita que “toda
arte é marginal e, quando deixa de ser, torna-se as fezes que vocês comem!”,
grita, referindo-se aos aliados administrativos e coronelistas de seu ex-amigo.
O martírio enquanto categoria geral do “mártir que morre a tiro” torna-se uma
certeza. E, de fato, a peça termina com a iminência de um disparo anticlimático
de revólver...
Entremeada por elipses extremas (levando-se em conta que,
segundo a sinopse, cerca de vinte anos se passam em setenta minutos), a peça
teve como principal problema, ao menos nesta apresentação, o desempenho dos
atores: histriônicos, rebuscados e cerceados pela artificialidade de suas
composições personalísticas, deveras inconsistentes, os três membros do elenco
dificultaram a imersão do público no teor reclamante da peça. Dos três, Kassem é
menos merecedor de vitupérios analíticos, visto que, apesar de sua entrada em
cena pouco convincente, entupindo o texto de gírias contemporâneas num diálogo
que deveria ser sessentista, está credível como o pai de família combalido,
surpreendente (e amedronta) como torturador e sustenta com dificuldade a
seriedade do enfrentamento tardio com aquele que, noutros tempos, era um colega
de estudos e boemia. Paula Auday esteve péssima como a mãe desamparada que,
diante da possível morte de seu filho rebelde, chora enquanto grita que não saberá
o que fazer sem ele, com todo aquele luar em seu quintal, mas não atrapalha
tanto como a professora de piano com um segredo atrelado ao rico explorador do
trabalho do aluno por quem se apaixona e quase nos emociona quando ousa “dançar
Chopin na chuva”, ao lado de seu amado. Allan Jones Mariano, o integrante do
elenco que eu conhecia e admiro, infelizmente não demonstrou um trabalho muito
coerente: apesar de ter enfrentado com audácia os trechos mais poéticos do
texto, seu olhar pareceu exacerbadamente embriagado (no mau sentido do termo: o
involuntário) durante o restante de sua presença em cena. Comove-nos enquanto
se arrasta pelo chão, descamisado, mas não sustenta a confiabilidade actancial quando
desempenha as funções de filho, amante e reivindicante pelos direitos dos
artistas que também desempenham árduo trabalho braçal. Talvez tenha sido
nervosismo de estréia, talvez tenha sido uma falha de direção, talvez tenha
sido um exagero perceptivo de minha parte (visto que não tirei os olhos dele,
tentando me convencer que não estava a gostar de sua interpretação), mas achei a
presença em cena de Allan Jones declinante. Com bons momentos, claro, mas
inconvincente no geral. Pena... Mas obras de arte permitem isso, inclusive: a inconstância!
Ao final do espetáculo, conversei com alguns amigos acerca
de nossas apreciações e todos eles demonstravam decepcionados no geral, mas satisfeitos
com um ou outro aspecto. “Não foi de todo ruim...”: ouso repetir para mim mesmo
agora, contente pela oportunidade de ter apreciado uma tentativa de comunicar
algo ao público, de incitá-lo à conclamação político-ideológica, de ter me
empolgado quando vi o próprio autor adentrar o palco para compartilhar conosco
a gênese de sua partitura prosaica e o quanto a canção “Triste Aribé” (muito
bem executada na peça por Allan Jones Mariano) foi representativa para si, mas,
ao mesmo tempo, não consigo conter o riso desmerecedor quando relembro
passagens da peça, como quando o pai vocifera que “pobre também sonha em 3x4” ou quando a mãe retruca que “o único sonho que alimenta é aquele
que é vendido na padaria”. Tendo desfeito a minha promessa por uma boa causa,
posso voltar à persecução de meus princípios... E eu fui apenas um num palco
lotado de espectadores!
Wesley PC>