Na terça-feira à noite, fui com alguns amigos ao cinema.
Conversamos bastante após o filme, comemos panetone com iogurte e, ao chegar em
casa, planejava ver “Lucíola, o Anjo Pecador” (1975, de Alfredo Sternheim),
filme que seria exibido na televisão, naquela madrugada. Empolgado com a
escritura da crítica do filme que havia visto em tela grande, não consegui me concentrar
no subestimado clássico nacional, baseado num romance icônico da literatura
brasileira que, injustamente, ainda não havia sido lido por mim. Dormi
angustiado nesta madrugada: precisava ler “Lucíola” (1862), ciente de esta
seria mais uma obra-prima literária do José de Alencar.
Dito e feito: na tarde seguinte a esta madrugada, fui à
Biblioteca da UFS e encontrei um único exemplar desgastado do referido livro,
quase a gritar o meu nome. Em posse do mesmo, ainda nesta noite consumi os três
primeiros capítulos do romance e já estava mais do que contemplado animicamente
com as descrições apaixonadas do autor, que, num dado instante, fazia com que a
sua instância narrativa comparasse o ato de descobrir uma mulher amada como não
sendo mais virgem à decepção de alguém que, “ao colher a linda flor, em vez da
suave fragrância, sentiu o cheiro repulsivo do torpe inseto que nela dormiu”
(capítulo II). Era um romance extremamente moralista – e preocupante, ao fazer
com que a sua protagonista legitimasse os valores que infringe, a ponto de
justificar a sua autopunição letal – mas encantador em cada linha de
hipertrofiado romantismo ali contida.
Na trama, o protagonista é o estudante Paulo Silva,
recém-chegado ao Rio de Janeiro, onde planejava encontrar Sá, um amigo apenas três
anos mais velho porém devidamente estabelecido. Este amigo o apresenta à
cortesã Lúcia, por quem Paulo apaixona-se perdidamente, ainda que não consiga
controlar nem o ciúme nem a desconfiança, por mais que a prostituta arrependida
demonstre respeitar minuciosa e rigorosamente até mesmo ao seu mais reles capricho
de donatário amoroso.
Passam um tempo juntos, brigam, reconciliam-se, brigam mais
uma vez, ele a humilha, ela tenta rebater a humilhação mas é humilhada ainda
mais, ele a humilha mais um pouco, ela se humilha e, afinal, ambos assumem-se
como irremediavelmente apaixonados, não obstante admitirem que só poderão lidar
com o que sentem quando ignoraram o que as pessoas da sociedade falarem de mau
acerca de seu concubinato. Paulo, porém, é influenciável, o que o autor José de
Alencar genialmente faz questão de evidenciar, não apenas dirigindo suas
palavras diretamente para leituras femininas enrubescidas diante da imoralidade
da trama como interferindo diretamente na escritura do próprio livro, ao
alegar, por exemplo, que, evita as reticências em sua narrativa, mas sugere
que, caso alguma leitura esteja escandalizada diante do que lê, pode substituir
o que lhe desagrada pela referida pontuação. Ele deixa claro, entretanto, a sua
prerrogativa formal: “com efeito, a reticência não é a hipocrisia no livro,
como a hipocrisia é a reticência na sociedade?” (capítulo VII). Uso reticências
sobejadamente, a ponto de ousar discordar deste julgamento entendido, mas, no
contexto em pauta, é prenhe de sentido e absolutamente ousado em sua
metalinguagem.
À medida que avançava na leitura, encantava mais e mais,
identificando-me plenamente com a personagem feminina, a tal da Lúcia, que, no capítulo
XIX, revelará possuir outro nome de pia, Maria da Glória, modificado depois que
precisou recorrer à prostituição no afã por livrar seus pais e irmãos do surto
de febre amarela que os afligiu em 1850. Se a trama já era romântica,
melodramática e sublime até então, após esta confissão de martírio, a
personagem de Lúcia tornou-se merecedora dos adjetivos angelicais que autor e
instância narrativa insistiam em atribuir-lhe. Paulo a perdoava, mas não
conseguia entender que as pessoas ao redor dela a enojassem, por mais que ela
desse sinais de arrependimento plangente, tendo abandonado inclusive a vida de
meretrício. Ao que a própria Lúcia (aliás, Maria da Glória) adianta-se em
retorquir: “elas não sabem, como tu, que eu tenho outra virgindade, a
virgindade do coração! Perdoa-lhes, Paulo!” (capítulo XX).
Ao final, como era esperado, Lúcia morre, carregando em seu
ventre um filho recém-abortado, servindo ela própria de túmulo para o ente
gerado pela criatura de um amor inaceito. Diante da lembrança de seu cadáver,
Paulo alisa a trança que cortou-lhe antes do sepultamento e redige: “há nos
cabelos da pessoa que se ama não sei que fluido misterioso, que comunica com o
nosso espírito” (último parágrafo do derradeiro capítulo, o XXI). Por mais que
uma ou outra passagem tenha sido lavrada por fortíssimos preconceitos de classe
– comuns à época, mas paradoxalmente reproduzidos pelos personagens e pelos
conselhos repletos de pudicícia às leitoras – amei pungentemente o romance, um
dos meus favoritos desde então. Digo mais: estou ansiosíssimo para finalmente
conhecer o filme nele baseado, imbecilmente tachado de “pornochanchada” por
alguns detratores da Boca do Lixo, visto que, segundo eles, o erudito diretor Alfredo
Sternheim havia sexualizado demais a trama. Tendo lido o que eu li, acho
difícil respeitar o romance sem suceder a uma reprodução pornográfica dos
eventos desenrolas nos capítulos VI e VII, em que, numa orgia financiada por
homens riquíssimos, inclusive o melhor amigo de Paulo, o já referido Sá, Lúcia,
entre tantas outras prostitutas, despe-se, em meio a diversos estouros
báquicos, na azáfama por imitar ebriamente as posturas lascivas dalgumas
modelos desnudas dos quadros famosos que ornamentavas as residências dos endinheirados
e esnobes convidados. Preciso ver este filme o quanto antes!
Wesley PC>