sábado, 20 de novembro de 2010

“SENHORA MINHA, COM CERTEZA NUNCA VIU CAIR UM CARTEIRO”...

E, quando eu era pequeno, lembro que, quando o funcionário da agência dos Correios descia a rua, os meninos, em polvorosa, gritavam: “carteiro, tem revista?”. Um dia, eu ganhei uma destas revistas, uma daquelas da Hermes, destinada a vendas. Lembro que, no mesmo dia, eu e alguns vizinhos provocamos inocentes ereções ao encostarmos nossos pênis pequenos nas fotografias de modelos em roupas íntimas, que posavam para vender cuecas. Ai, ai, não se fazem mais anúncios eróticos como os de antigamente...

Por isso, fui assaltado por algo mais do que nostalgia no 53º capítulo do clássico “Quincas Borba” (1891), de Machado de Assis, em que Sofia, a esposa contente de um fazendeiro, sentia-se incomodada e chateada com tudo ao seu redor, depois de ter sido alvo dos galanteios de um capitalista por ela apaixonado, até que espia um carteiro levar um tombo e não consegue conter o riso. Deixa vazar uma gargalhada altissonante, que, quiçá censurada por alguns leitores ou leitoras, merece a defesa pessoal do narrador, que acrescenta:

“Às vezes, nem é preciso que ele caia; outras vezes nem é sequer preciso que exista. Basta imaginá-lo ou recordá-lo. A sombra da sombra de uma lembrança grotesca projeta-se no meio da paixão mais aborrecível, e o sorriso vem às vezes à tona da cara, leve que seja, – um nada. Deixemo-la rir, e ler a sua carta da roça”.

E inicia-se em seguida o capítulo LIV. Mas aquele sorriso convidativo repercutirá para sempre em minha mente apaixonada de leitor...

Wesley PC>

NIPPON ROCKS!

Quem me conhece de perto, sabe que, ao invés de denotar a empolgação pretendida, a expressão anglofílica acima externa desprezo massificado de minha parte: desgosto particularmente de interjeições globalizadas de contentamento superficial quanto aquelas que protagonizam “Crows: Zero” (2007) , pior filme que vi do genialmente prolífico Takashi Miike, até então. Talvez os meus desapontamentos com este filme tenham se intensificado por eu tê-lo visto no mesmo dia que uma de suas obras mais inteligentemente discursivas, mas creio que ficaria chateado de qualquer forma: “Crows: Zero” é um filme entreguista. Por mais que os absurdos para-sobrenaturais que caracterizam o diretor estejam lá, por mais que as volições honoríficas que carecem do uso reiterado da violência sejam mostradas em seu perigoso viés inalcançável, por mais que o estilo único de bricolagem miikeana possa ser detectado numa montagem inspirada de seqüências comparativas, em que vencer uma guerra de gangues juvenis tem tanto impacto quando caminhar até a sala de cirurgia onde se realizará uma delicada operação contra um avançado aneurisma cerebral ou ler um romance de Albert Camus até o final, “Crows: Zero” possui um roteiro ininteligível, a trilha sonora ‘rocker’ é anti-japonesa (seja lá o queira dizer isso!) e a pancadaria que se instaura dominantemente nos 130 minutos de duração do filme por vezes redunda no mero “que vença o melhor!”. Conclusão: fiquei decepcionado com o filme, mas não com seu diretor. Tanto que estou empolgado para assistir à continuação deste filme, “Crows Zero 2” (2009), no sábado que vem, no canal pago MaxPrime. Pode até ser que seja pior do que este primeiro filme, mas jovens japoneses ‘punk’ enchem os olhos de quem os vê! (risos)

Wesley PC>

EU NÃO AGÜENTO NEM A DOR NEM O SOFRIMENTO?!

Não sou eu que me disporei a responder. Não sei e prefiro não ser testado neste sentido. Tenho certeza de que me entregaria mui facilmente se fosse exposto às bárbaras torturas físicas que acabo de presenciar em mais um filme genial do ultra-pós-moderno Takashi Miike, “Ichi – O Assassino” (2001).

Numa das cenas do filme, o sádico personagem Kakihara (interpretado magistralmente pelo sensual Tadanobu Asano) pendura um interrogado no tato, através de diversos ganchos pontiagudos em suas costas. Perfura sua face com agulhas de aço e, num paroxismo quase insuportável de perversão, derrama óleo escaldante sobre suas costas e couro cabeludo. Minha mãe, da cozinha, perguntava: “isto é hora de ver um filme destes Wesley, com tantos gritos e gemidos?”. Mal sabia ela o que estava a acontecer diante de mim...

Para além de toda a dor que exalava do filme, intra- e extra-diegeticamente, o que me fez ser tentado a desviar o olhar da tela foi o momento que se segue, mostrado em foto: tendo descoberto que o homem que torturara não estava envolvido no seqüestro que tencionava resolver, Kakihara oferece um pequeno sacrifício como demonstração de seu arrependimento. Diz que aprecia sobremaneira os doces e acrescenta: “vou extrair agora o órgão de meu corpo que tanto me causa prazer”. E, com uma espada suja, corta fora a parte frontal de sua língua. E eu me contraía violentamente no sofá. E se fosse eu, em qualquer um dos lados da tortura representada, até que ponto ousaria desfazer-me de uma parte de meu corpo em troca da expiação fetichista de uma culpa? Não sou eu que me disporei a responder, mais uma vez.

Há alguns dias, assisti a um clássico filme de Roberto Rossellini, em que seu protagonista religioso dizia que o sofrimento é um dom de Deus”, pouco antes de morrer. Concordei com ele, no sentido de que muito valorizo o tipo de entendimento que podemos extrair quando sobrevivemos a uma provação proto-sacrifical. Escrevi um texto sobre isto (eis aqui) e uma comentadora disse que prefere a dor ao sofrimento, no sentimento de que a primeira traria mais aprendizado do que o segundo. E eu ousei discordar, mas prefiro não me arriscar a uma comparação prática. Deixe quieto.

Terminado o filme do Takashi Miike, prenhe de cenas de tortura, decapitação, espancamentos e sofrimentos ainda mais atrozes que a descrita automutilação, lembrei da primeira vez que li o famoso apotegma poético de Carlos Drummond de Andrade “a dor é inevitável, o sofrimento é opcional”: numa dia qualquer de 1996, na porta do banheiro do colégio em que estudei o Ensino Médio. O autor da pichação desta frase atribuiu a mesma ao vocalista do grupo Legião Urbana, enquanto eu teimava em não entender o seu sentido. Nunca consegui vivenciar o sofrimento como algo opcional. Sempre me pareceu tão inevitável quanto a dor... Tão inevitável quanto!

Engraçado é como Takahi Miike resolve genialmente os problemas morais que poderiam surgir num roteiro tão delicado quanto este: as motivações dos personagens são todas abordadas enquanto meros ‘McGuffins’ (ou seja, conforme nos ensinou Alfred Hitchcock, são o que menos importa na narrativa, mesmo se forem citados de 10 em 10 segundos); o personagem Kakihara é dotado de instintos tão masoquistas quanto sádicos (vide o momento em que ele pede para ser espancado por uma prostituta ou quando enfia duas enormes agulhas de aço em seus ouvidos, ui!); as pulsões homoeróticas do mesmo Kakihara jamais são negadas; a retroalimentação malfazeja da vingança é destruída quando o anti-heróico personagem-título decapita, sem cerimônia, um garotinho de 10 anos que chorava a morte de seu pai; e a saturação imagético-sonora do filme funciona como metonimização suficiente do contexto sentimentalmente derruído que engendra personagens tão malévolos quanto aqueles. Não há bons nem maus no filme. Há pessoas que agem pura e unicamente em função dos seus sofrimentos, sejam eles auto-infligidos ou não. Por isso, eu me recuso em responder à pergunta do título desta postagem. Não consigo, não quero, não me arrisco. E ainda acho mais positivamente valorativo sofrer do que sentir dor!

Wesley PC>

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

“I AM A FAGGOT FUCKER – AND I’M PROUD OF IT!” (HORAS DEPOIS)

Pensava isso há algumas horas, que vi novamente diante do trabalho extraordinário de David Wojnarowicz, artista plástico morto em 1992, em decorrência da AIDS. O tempo passou, ele foi embora e, ao contrário do que diz a campanha, estou perdendo a cabeça... Estou perdendo a cabeça!

Wesley PC>

HARVEY MILK, MORTO A TIROS EM 27 DE NOVEMBRO DE 1978: UM PIONEIRO!

Uma vez, quando eu tinha mais ou menos 7 anos de idade, fui com minha mãe a uma feira pública. Ela tencionava comprar mocotó, algo que desde pequeno eu desgostava. Ela conversava com a feirante, escolhendo os melhores e mais baratos pedaços do produto, enquanto eu expressava meu desagrado facialmente. Percebendo isto, a feirante disse: “tua filha está fazendo uma cara tão feia. Ela não gosta de mocotó não?”. Minha mãe, embaraçada, apenas respondeu: “é ele. Não, ele não gosta!”. E eu fiquei triplamente envergonhado, sentindo que havia de muito errado comigo. Há dois anos que eu já era vítima de atividades sexuais com homens com o triplo de minha idade. Fora criado homossexual e, para tanto, minha aparência física delicada deve ter contribuído sobremaneira. Ao que eu pergunto: a gênese do homossexualismo é social ou fisiológica? Ambos os efeitos confundiam-se largamente em mim!

Em várias outras situações, minha aparência frágil e minha afetação comportamental levaram-me a ser confundido com uma menina. Era espancado quase diariamente no colégio por causa disso. Fui chamado de “bicha” desde que me entendo por gente, aos 3 anos de idade, quando um pedreiro foi construir um muro em minha casa e mostrou-me seu pênis através da porta do banheiro. E eu gostei de ver aquilo. Tinha algo de errado comigo, mas... Era genético ou eu era socialmente estimulado a isso?

Poderia enumerar dezenas de bifurcações motivacionais antes mesmo de eu completar 12 anos de idade, quando, convertido a um fanatismo católico, intentei abandonar as práticas bissexuais que me eram tão comuns. Cria-me já condenado ao inferno, por infringir um mandamento básico, por ter cometido o pecado imperdoável do desrespeito à castidade. Restava-me tentar atenuar a pena. Para tanto, fui obrigado a abandonar a vida em sociedade. Só saía de casa sob a luz solar para ir para a escola. Mas, no meu íntimo, era atormentado por desejos e práticas masturbatórias de inspiração largamente androfílica, não raro direcionadas às memórias e relances de pentelhos de machos que eu via nos filmes brasileiros que meu irmão mais velho via às quintas-feiras numa sessão televisiva da TV Bandeirantes. Eu era um pecador – e me atormentava todo dia com isto. Tinha a certeza inocente de adolescente de que eu seria preso em breve e de que morreria com AIDS. Minhas esperanças de envelhecer eram exíguas, apesar da vontade inevitavelmente instintiva de que isto ocorresse. E hoje eu tenho 29 anos e sou confundido com homem quando passo pela rua. Sou um homem!

Assistindo, na noite de hoje, ao premiado documentário “The Times of Harvey Milk” (1984, de Robert Epstein), na TV Cultura, eu pensei, por um instante, que tudo poderia ser diferente: e se eu conhecesse a história deste político pioneiro quando ainda era um jovem em desenvolvimento? E se eu tivesse um modelo masculino mais seguro que meu irmão viciado e embrutecido para seguir? E se, ao invés de tapas e socos na escola, eu tivesse com quem conversar, eu tivesse um amigo? E se...? E, aos poucos, fui emocionando-se violentamente diante deste extraordinário exemplar de cinema e deste brilhante exemplo de política e apelo por igualdade de direitos. Levantei orgulhoso, ao final da sessão, mas, por um lado, era tarde demais para fazer algo.

Por um lado, por um lado apenas. Sempre há tempo de se fazer algo, de se reivindicar, de se exigir direitos básicos e simples condições de vida. Como diria um célebre refrão de The Smiths: “I am human and I need to be loved, just like everybody else does”! É básico isto, mas… Quão difícil na prática!

Voltando ao filme: telefonei para o máximo possível de amigos com a TV Cultura disponível entre seus canais de TV, temendo que o prazer e orgulho que agora falho em demonstrar no que tange à audiência deste belíssimo documentário não pudesse ser compartilhado dialogisticamente. Em fevereiro, já havia me empolgado sobremaneira diante de “Milk – A Voz da Igualdade” (2008), ótimo filme do militante ‘queer’ Gus Van Sant (vide texto aqui). Porém, para além de sua funcionalidade discursiva e cinematográfica, este filme filiava-se a um dos gêneros hollywoodianos que eu mais desgosto: a cinebiografia. Entretanto, apesar de minha insatisfação em cenas protagonizadas por Diego Luna ou na encenação melodramática de algumas seqüências (a morte operística do protagonista, à frente), era-me inegável o poder supra-fílmico deste petardo militante. E, ao ver o verdadeiro Harvey Milk em ação, como eu me emocionei e dei mais vazão à genialidade do diretor Gus Van Sant e à perfeita interpretação de Sean Penn: o personagem está igualzinho á figura pública real. Harvey Milk era daquele jeito mesmo. Afetado, reivindicante, sorridente, polemista, apaixonado. Senti um orgulho tardio, mas ainda a tempo: houve alguém que me representou tão bem enquanto individuo potencialmente atrelado a uma classe social, antes mesmo de eu ter nascido. Tremi de orgulho! Genial estória, genial personagem, genial político, genial luta, genial reencontro entre espectador e cinema sentido na práxis!

À medida que “The Times of Harvey Milk” avançava, não somente o filme de Gus Van Sant se tornava ainda melhor, em razão da confirmada supremacia reconstitutiva, o documentário por si mesmo revelava-se um importantíssimo marco histórico de luta por direitos que não deveriam precisar sequer ser exigidos, de tão básicos que são enquanto destinados a qualquer indivíduo. Mas o mundo não é justo como pretendem os idealistas constitucionais. E a soltura antecipada do assassino branco, católico e muito bonito de Harvey Milk só confirmou isto, conforme fizeram alarde os enraivecidos signatários do finado pioneiro homossexual. Descrito, em mais de um momento, como “o primeiro funcionário público abertamente ‘gay’ dos Estados Unidos da América”, Harvey Milk tornou-se muito mais do que um exemplo para pessoas que passaram pelo que eu passei. E, como sói acontecer com quem luta, foi injustamente morto e injustamente relegado ao segundo plano das ações públicas por manipuladores oportunistas da opinião pública. Até que um gênio o resgatasse... E quem sabe agora, será definitivo? Quem sabe?

Ainda vendo o documentário – que mostra como aconteceram na realidade muitas das situações que constam do espetacular roteiro de Dustin Lance Black – não pude conter uma reação de escândalo diante das medidas absurdas que eram postas em votação pelos conferencistas estadunidenses. A absurda “proposição 6”, que defendia a expulsão inglória de quaisquer professores homossexuais que lecionassem em São Francisco talvez seja a barbaridade mais aberrante, que rende uma cena pública fortíssima, em que a equipe do documentário e alguns militantes aborda um casal de idosos asiáticos e perguntam o que eles acham da referida proposição, de maneira que estes evitam emitir qualquer parecer opinativo, até que o entrevistador lança a ameaça verídica: “se os políticos preconceituosos obtiverem êxito nesta proposição absurda, em breve serão cassados os direitos básicos de outras minorias que vivem nos EUA”. E eu fazia: “glupt”!

Belíssimo documentário, belíssima história real, belíssimo exemplo política, belíssima reconstituição dramatúrgica. E, de minha forma bastante particular, eu sigo lutando. Mas... Quem sou eu sem apoio ou representatividade? Às barricadas, já e sempre!

Wesley PC>

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

“COMO VAI ESTA FORÇA?”

Eu estava sentado na frente do setor em que trabalho, aguardando o momento ideal para voltar ao balcão de atendimento, quando alguém me perguntou isso: “como vai a tua força, Wesley?”. Olhei atônito para a pessoa, sem saber o que responder. Li o que estava escrito num cartaz diante de mim e ri, crente de que “rir é o melhor remédio”. E foi. Até que a sobrinha de uma dentista berlinense entra no setor que eu trabalho e começa a gritar que nada funciona neste país, que esta universidade não presta e que os funcionários públicos daqui detestam trabalhar. Sugeri que ela reclamasse sobre seu problema na Ouvidoria da Universidade, mas ela grunhiu, dizendo que não vai adiantar de nada, que esta universidade não presta, etc.. Sugeri que ela largasse o curso, então. Ela: “eu não posso. Dependo de um diploma superior”. Saiu da sala bufando. Eu rindo, perplexo. Preciso responder como está minha força?

Wesley PC>

“INTRODUCING THE HARDLINE ACCORDING TO TERENCE TRENT D'ARBY” (1987) E OS PODERES DA METONÍMIA MERCADOLÓGICA

Quando eu folheio o guia “1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer”, volta e meia me deparo com a expressiva capa deste disco, o suficiente para que eu me sentisse deveras motivado a baixá-lo. Ao fazê-lo e ouvi-lo, porém, decepcionei-me um pouco no que tange às expectativas qualitativas acerca do que o disco representa. É o tipo de disco que temos a obrigação de ouvir não porque seja efetivamente bom, mas sim porque é historicamente relevante. O que, para mim, não é prioridade: gosto do que é bom porque é bom ‘per si’ e não porque deva ser bom enquanto aplicação de princípios. Nesse sentido, se a voz gemebunda do artista soa encantadora ao repetir os diversos “I” [conjunto de fonemas transladado: /ai/] do refrão de “Who’s Lovin’ You”, última e melhor faixa do disco. Fosse por mim, enquanto pretenso crítico musical de ocasião, eu não defenderia tanto este disco, apesar de me deslumbrar sobremaneira pela extraordinária fotografia da capa. No plano musical propriamente dito, achei-o tão significativo enquanto demonstração programada de inserção de vozes negras ao ‘mainstream’ (leia-se: corrente dominante do mercado fonográfico), quanto o são artistas tão díspares quanto o primeiro Michael Jackson, a banda de ‘rap’ Arrested Development ou o dançante Haddaway. E, mesmo sem gostar tanto assim do disco, as três faixas iniciais “If All Get to Heaven”, “If you Let Me Stay” e “Wishing Well” chamam a atenção pelo tom concomitantemente cínico e apaixonado:

“Wish me love a wishing well to kiss and tell
A wishing well of butterfly tear
Wish me love a wishing well to kiss and tell
A wishing well of crocodile cheers”


E, só para constar, cada vez mais eu acredito nos poderes das preces familiares, conforme defende o cantor na primeira música...

Wesley PC>

NO DIA EM QUE NADA ACONTECERA...

No dia em que nada acontecera, em soube que um vereador local havia morrido e que um cachorro se escondera debaixo da cama. Na mesma noite em que nada acontecera, um estafado repositor de vegetais em supermercado adormecera diante de um programa educativo de TV, enquanto uma mãe terna fizera sopa para seu filho cansado. Na mesma noite, um garoto bonito me fizera perguntas sobre um trabalho extra enquanto fiscal de concurso, enquanto uma garota jovial alimentava-se com pedaços de toucinho num pão. Eu tentara assistir a um filme espanhol sobre fatalismo relacional, mas adormecera no mesmo sofá em que um cachorro bem-alimentado jazia... E utilizar corretamente os verbos no tempo mais-que-perfeito do pretérito do modo indicativo era o que menos me preocupara diante deste relato: nada acontecera, como se isto fosse possível!

Na noite em que nada acontecera, uma pessoa era esfaqueada em Riachão do Dantas, uma outra ouvia um disco da Madonna na cozinha de sua casa, uma terceira engravidava de alguém que amava e uma quarta vomitava depois de ingerir acarajé estragada. Na noite em que nada acontecera, um rapaz homossexual me dissera que, ao invés de descansar no sétimo dia, Deus, na verdade, havia se questionado sobre ter tido uma boa ou má idéia ao ter criado o mundo. E eu não entendera o porquê desta indagação tardia... Mas, mesmo assim, sorrira, ao tentar transmitir minha incompreensão para os vizinhos que se encontravam diante de mim...

Na noite em que nada acontecera, um cachorro roía um osso, enquanto uma rapariga de 30 anos dizia às suas amigas ingestoras de cerveja que já era hora de voltar para casa. A conta havia sido paga por rapazes desconhecidos e interessados em sexo casual. “Encontrei nossa colega na rua, e ela estava tão pálida, mulher!”. “Érica, puta, por que tu não lavaste o meu chinelo, como eu te mandei?!”. “Apague a luz e feche a porta, está tarde, já é hora de dormir”. “Eu ia te dizer uma coisa, filho, mas esqueci... Ah, lembrei: vais acordar a que horas, amanhã pela manhã?”...

Nada acontecera, de fato? A beleza da vida está em enxergar a singeleza que nos cerca em cada pequeno momento de existência!

Wesley PC>

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

ENQUETE 2 DE 2: SE EU FOSSE UM DEFICIENTE MENTAL, TERIA O DIREITO DE MASTURBAR-ME À BEIRA DA PISCINA E SER AJUDADO POR UMA LÉSBICA?

Seguindo com minha investigação pessoal acerca da abstinência virginal de sexo, finalmente vi “Heat” (1972), a terceira parte da famosa trilogia sobre o ‘white trash’ norte-americano, protagonizada por Joe D’Alessandro, dirigida por Paul Morrissey e produzida por Andy Warhol. E, se aqui o protagonista já não é mais vítima de sua beleza e de sua tendência nata ao gigolonato, como nos dois primeiros filmes, o recém-adquirido “alto conceito (sexual) de si mesmo” permite que ele extraia dinheiro e serviço de diferentes pessoas, desde a mãe solteira que pensa que é lésbica e o ricaço afetado que anda com uma suçuarana pela mansão até a dona de pensão gorda com cabelo volumosamente crespo e a atriz falida que força uma similaridade enredística com o clássico “Crepúsculo dos Deuses” (1950, de Billy Wilder), cujo conhecimento do assassinato final (que, na verdade, é anunciado ainda na primeira cena) fará com que o espectador gargalhe no desfecho deste novo filme, quando faltam balas no revólver que é disparado contra o cafajeste galã.

Neste último filme da trilogia, Joe D’Alessandro é quase coadjuvante, tamanha a quantidade de personagens verborrágicos e o roteiro espalhafatosamente paródico, sem a autenticidade crua dos dois primeiros filmes. Tanto é que a cena mais interessante deste filme é quando a filha lésbica da atriz que enlouquece por Joe – numa atuação muito mais firme e realista (no sentido hollywoodiano do termo) que as anteriores – conversa com o rapaz que costuma queimá-la com pontas de cigarro e depara-se com o irmão deficiente deste masturbando-se a seu lado. Impressionada que fica com o tamanho da ereção dele, ela resolve chupar seu pênis e facilitar, assim, uma ejaculação que nunca chega. O tipo de situação que acontece todos os dias, em todos os locais, venhamos e convenhamos.

Neste filme, a beleza física do protagonista está tão mais acessível e pudica que a resposta à existência da tal abstinência virginal de sexo pode ser equiparada a uma paráfrase de líder espírita local que, pregando em defesa da existência de almas mediúnicas, creiamos ou não nelas, disse que “os seres desencarnados são como as bactérias: nos não as vemos, mas não podemos negar que elas estão lá, em toda parte – e podem nos afetar!”. Em outras palavras: qualquer coisa pode existir e nos afetar, se assim quisermos. E, por mais que eu não tenha, nem de longe, gostado tanto deste terceiro filme quanto dos outros dois petardos anteriores, não pude deixar de me ver refletido na personagem sôfrega da Sylvia Miles, que fica tão obcecada por seu gigolô que se rasteja no chão, quando acaba seu dinheiro, interesse central dele, suplicando que ele não vá embora. Mas ele vai... E esta é a abstinência de que falo, a que mais me preocupa, a que tem menos a ver com a manutenção de uma prática genital fisiologicamente desgastada e mais com a concorrência desleal que pessoas que fazem uso traiçoeiro de sua beleza, apelos capitalistas materiais, drogas lícitas ou ilícitas e jogos eletrônicos operam na vida de quem ama. E eu sou um destes...

Wesley PC>

EROTISMO HERMÉTICO OU TU JÁ FICASTE COM VONTADE DE ENFIAR UM PEPINO NA VAGINA QUANDO LESTE A HAGIOGRAFIA DE UMA VÍTIMA DE ESTUPRO CONVERTIDA EM SANTA?

Esta deveria ser a parte 1 de 2 de uma enquete sobre a possível existência e diagnóstico de uma abstinência virginal de sexo. É possível? Vale a pena? No rádio, a faixa 1 do disco “Talking Heads: 1977” (1977), do grupo alternativo Talking Heads. Alternativo demais, talvez. Tanto que beira a obviedade. Algo que, definitivamente, o cineasta polonês Walerian Borowczyk não quis e não conseguiu em seu clássico (e, por vezes, enfadonho) “Contos Imorais” (1974), um dos filmes que mais desejava ver quando era pequeno e que, hoje, soou-me hiperestimado. Por que eu não gostei tanto? Porque soa enfadonho às vezes, hermético mesmo em sua pretensiosa crítica à hipocrisia religiosa.

Quatro estórias: na primeira, “A Maré”, um guri de 20 anos explica a sua prima, 4 anos mais jovem, que sua ejaculação tem a ver com o movimento das marés. Óbvio, logo, o melhor e mais simples dos episódios; no segundo, “Thérése Philosophe”, uma guria crente faz o que o título nos pergunta: enfia um pepino na vagina depois que é confinada num claustro, acusava de ter faltado à missa, e, ouvindo uma voz que pensa ser de Jesus Cristo, enquanto lê a hagiografia de uma santa que assim foi considerada depois que fora estuprada por um mendigo. É bonito e silencioso, devoto até, mas... e daí?; no terceiro, “Erzsébet Báthory”, a História entra em cena com H maiúsculo. Para quem não associou o nome à pessoa Erzsébet Báthory é a nobre húngara que recebeu o apelido de Condessa Drácula por gostar de banhar-se no sangue de aldeãs. Interpretada pela diva da moda Paloma Picasso, a condessa seleciona quais garotas merecem o (des)prazer de servirem de material coloidal rubro, muito rubro, para o seu banho, sendo lavada com água comum em seguida, graças aos esforços de uma cortesã por quem é atraída e por quem é também traída, sendo presa ao final; e, por fim, no quarto e último, “Lucrezia Borgia”, igualmente validado pela História, a famosa personagem-título fode com seu pai, Papa Alexandre VI, e com seu irmão clérigo, enquanto um protestante morre queimado pela Inquisição por protestar contra a devassidão dos membros da Igreja Católica. Não sei se gostei, mas é bonito. Quase óbvio, aliás, mas bonito. E enfadonho.

E, agora, o nome da faixa que o David Byrne interpreta à frente do Talking Heads é “No Compassion”, faixa 6. Vou comer um pouco de bolo de arroz com café e ver outro filme tendenciosamente erótico, mas não tão hermético quanto este. Há 3 semanas que eu não extraio nenhum material seminal característico de meu longevo “fornecedor”. Talvez seja uma nova forma de demonstrar fidelidade a uma paixonite que tendente à aniquilação. Ou à minha aniquilação. Ou à aniquilação do tempo. E adianta? Estaria eu com abstinência virginal de sexo? Faixa 10 do disco: “Psycho Killer”.

“I can't seem to face up to the facts
I'm tense and nervous and I can't relax
I can't sleep, 'cause my bed's on fire
Don't touch me I'm a real live wire”


Wesley PC>

terça-feira, 16 de novembro de 2010

A SUMA PERFEIÇÃO X A AUSÊNCIA DE HIERARQUIAS

Antes de voltar para casa e devorar com fervor sublime os 26 maravilhosos capítulos de “O Quinze” (1930), da cearense Rachel de Queiroz, uma das obras mais perfeitas da Literatura Mundial, pelo menos, daquelas até então lidas por mim, me vi diante de uma mesma questão entre dois moços fisicamente egrégios, encontrados com diferença de 10 minutos entre um e outro. Perguntei a ambos: “se todas as pessoas duma dada comunidade recebessem exatamente a mesma baixa renda monetária, e estes não se relacionassem comparativamente com mais ninguém de outras comunidades, poderíamos falar que eles eram pobres?”. As respostas de ambos, filiadas à minha própria, serviram para constatar que alguns dos preconceitos contra sertanejos de que me vi vítima após a audiência ao filme “O País de São Saruê” (1971, de Vladmir carvalho) decorriam de uma insatisfatória apreensão do documentário enquanto tal, reação negativa esta que, definitivamente, não me acometeu diante do romance supracitado, supra-perfeito, através do qual senti-me irmão de cada um de seus personagens humanos, tão equivocados em situações de desespero reativo ambiental quanto o seriam quaisquer outros seres humanos. E este desespero era ativado pela seca de 1915 no Ceará, só rivalizada à “grande seca de 1877”, citada à exaustão tanto pelos personagens do livro quanto pelos entrevistados do documentário.

Tendo consumido 1/3 do livro, empolgadamente, debaixo de uma árvore enquanto esperava alguém, lamentei por um momento que minha memória fosse incapaz de reter em detalhes toda a magnificência daquela obra, toda a supremacia daqueles diálogos, toda a riqueza de conteúdo descritivo levada a cabo por uma escritora estreante e nordestina de apenas 20 anos de idade. As palavras soam-me até inglórias para descrever o que senti. É um livro curto, mas alça vôos tão elevados no plano da psicologia histórico-dramatúrgica que a apologia amadora aqui pretendida por mim revela-se assaz inglória da magnificência da escrita penetrante de Rachel de Queiroz.

Conforme dito, são 26 capítulos. No primeiro, somos apresentados à professorinha Conceição, leitora assídua das obras que dispõe em sua biblioteca pessoal, e à sua acomodada avó Mãe Nácia, já demasiado envelhecida. Aos 22 anos de idade, Conceição já era bastante cobrada por ser ainda solteira. Nutria uma paixão mal-resolvida e mal-anunciada por seu primo Vicente, sobremaneiramente preocupado com os efeitos catastróficos da seca intensiva na fazenda que estava sob os seus cuidados. Ao seu redor, os latifundiários despediam os funcionários e largavam os animais para morrerem de fome. Chico Bento é um destes fazendeiros abandonados à própria sorte, que, sem perspectivas de vida melhor, resolve migrar para o Amazonas. A pé. Junto a si, a esposa Cordulina, a cunhada Rosinha (que desata do grupo para conseguir um emprego malogrado de balconista numa venda) e uma penca de filhos. E, aos poucos e em golpes cruéis de realidade, as trajetórias destes personagens são deslindadas frente a nós.

Apesar de o trecho do livro que mais tenha encravado em minha mente ser o conjunto de reflexões de Vicente sobre a pseudo-superioridade jurídica de seu irmão Paulo, formado em advocacia (no capítulo 8, lê-se: “ser superior é renunciar ao seu feitio e à sua vontade e, recortando todo o excesso de personalidade, amoldar-se à forma comum dos outros?”), os paroxismos dramáticos do romance são freqüentes. Numa passagem, Chico Bento depara-se com fazendeiros famélicos que se alimentam de uma vaca podre, morta de uma grave doença nos chifres, ao que ele se compadece e oferece os púnicos retalhos de carne de bode de que dispõe. Num instante seguinte, ele é tachado de ladrão após esfaquear uma cabra que surge diante de si num momento de extrema inanição familiar. Um de seus filhos morre envenenado após comer mandioca crua. E, no capítulo 7, Dona Cordulina perguntava: “Chico, que é que se come amanhã?”. A instância narrativa prossegue: “a generosidade matuta que vem na massa do sangue, e florescia no altruísmo singelo do vaqueiro, não se perturbou: ‘ – Sei lá! Deus ajuda! Eu é que não havera de deixar esses desgraçados roerem osso podre’”...

E, por mais que a fome, a seca e o degredo sejam tão protagonistas quanto os personagens humanos em si, a autora não se furta de anunciar dramas associados à faina burguesa: Conceição sente raiva ao imaginar seu pretendente inassumido beijando uma negra; Conceição sente nojo de tocar em seu afilhado infantil, tingindo de poeira e negrume pela fome e pelo sol escaldante; Conceição lamenta que sua avó ou seus vizinhos jamais lerão um livro de Machado de Assis; Conceição pronuncia: “ – Ora o amor!... Essa história de amor, absoluto e incoerente, é muito difícil de achar... eu, pelo menos, nunca o vi... o que vejo, por aí, é um instinto de aproximação muito obscuro e tímido, a que a gente obedece conforme as conveniências... Aliás, não falo por mim... que eu, nem esse instinto... Tenho a certeza de que nasci para viver só...”. Seria Conceição um alter-ego da própria Rachel de Queiroz?

Não é porque a miséria cerca as pessoas que elas deixam de ser pessoas, prova-nos Rachel de Queiroz através desta obra-prima breve e superlativa. Mas é difícil manter-se humano quando vemos as vacas e cachorros com quem fomos criados sucumbir à vermelhidão óssea causada pela completa ausência de qualquer coisa para se pôr na boca enquanto paliativo alimentício. É difícil manter-se pessoa quando se constata que o Governo, que deveria ajudar seus governados, não passa de uma “cambada ladrona”. É difícil manter-se pessoa quando a mendicância sub-humilhante é o único pálido recurso que ainda permite um vislumbre infinitesimal de sobrevivência. Definitivamente, eis um livro que nos cala a boca – e, por extensão, obriga-nos a ter o que falar, a ter que falar! Está entre os meus favoritos pessoais, não consegui parar de ler até que chegasse ao fim. E não tem fim. Efetivamente, não tem fim. Está acontecendo ainda!

Wesley PC>

“TU NÃO ESTÁS A SENTIR ISTO. É APENAS O VÍRUS AGINDO...!”

Finais de temporada de seriados televisivos são sobremaneira elucidativos por pelo menos dois motivos: 1 – os produtores precisam “presentear” o público com revelações e clímaxes arrebatadores, que validem o esforço audiente deles até então; e 2 – estes mesmos produtores precisam de “ganchos” para que o público permaneça fiel na temporada (não raro, oportunista) seguinte. Pois bem, de ontem para hoje, assisti aos três últimos episódios da primeira temporada de “House” e fui posto à prova em ambos os motivos, tanto em forma quanto em conteúdo. Seguem resumos de meu espanto agradecido:

Episódio 20, “Love Hurts”: bastaria o título para que eu gemesse de satisfação. Uma das médicas da equipe do protagonista é procurada por ele, a fim de reaver o seu emprego, mas ela já prometera integrar a equipe de outro hospital. Ele pergunta se não tem algo que possa ser feito para que ela mude de idéia. Ela, então, se confessa apaixonada por ele e diz que só voltará para o hospital em que ele trabalha se ambos saírem juntos, como se estivessem num encontro romântico (vide foto). Glupt, amor dói! Amor não-correspondido mais ainda! Amor fadado ao fracasso pessoal, mas ao sucesso colaborativo profissional ainda mais ainda. Glupt quádruplo!

Episódio 21, “Three Stories”: dirigida por um diretor afetado (Paris Barclay) que se pretende cheio de estilo, este episódio segue uma estrutura propedêutica muitíssimo diferente do que até então estávamos acostumados. O episódio é conduzido de forma alinearmente reconstitutiva, de maneira que três pacientes diagnosticados com problemas numa das pernas são ameaçados de amputação. Um dos três pacientes revela-se o próprio Gregory House (numa atuação ainda mais exigente e bem-sucedida do ótimo Hugh Laurie), que aqui se revela temente à dor e às frustrações amorosas. Glupt! Achei presunçoso, mas, enquanto lição de vida, é uma belezura!

• E, por fim, o episódio 22, “Honeymoon”: um final brusco de temporada, inconcluso, aberto, com uma imagem recorrente em ‘close-up’ do protagonista ingerindo os comprimidos analgésicos em que é viciado, enquanto a trilha sonora executa solenemente “You Can’t Always Get What You Want”, de The Rolling Stones, quando o protagonista falha ao tentar caminhar sem o apoio de sua muleta. Neste episódio, ele se declara ainda apaixonado por uma antiga namorada, enquanto a Dra. Cameron (Jennifer Morrison), apaixonada por ele, consola-se ao saber que ele é capaz de amar, mas entristece-se quando percebe que o alvo deste sentimento é outra pessoa. Glupt! Meus planos de ignorar as temporadas seguintes foram por água abaixo!

Ao final da temporada, comportamentalmente distinta do início, visto que várias gradações de sentimentos acometeram os personagens [destaco: a traição pusilânime do Dr. Chase (Jesse Spencer), o destaque ativo da expressiva Dr. Lisa Cuddy (Lisa Edelstein), a instabilidade afetiva do Dr. Wilson (Robert Sean Leonard)], constato comigo mesmo que o que mais me interessa nos episódios não é o surpreendente compêndio de diagnósticos fantásticos e supra-detetivescos dos protagonistas, mas sim a avaliação contundente das variegadas possibilidades de relacionamento extra-, intra- e efetivamente profissional que pode ocorrer em qualquer ambiente, sendo a tensão hospitalar muito relevante enquanto metáfora mais geral. Tentei telefonar para o rapaz que me emprestou os DVDs com os episódios, mas este é misantropo no que tange às interações mediadas por bônus de telefonia celular, de maneira que terei que suportar algumas horas para descobrir se ele se sentiu traído ou não ao constatar a fragilidade evidente do arrogante protagonista, cuja carência é frisada em cada sutil movimento da extraordinária composição de Hugh Laurie. Tornei-me fã do seriado, por dentro e por fora. Entenda-se isto como melhor convier.

PS: o título desta postagem é, nada mais nada menos, que a reprodução de uma fala do último episódio, quando o atual marido da ex-namorada do Dr. House tem um ataque de ciúmes ao vê-la conversar intimamente com ele. Afinas de contas, não era um sintoma da doença que a médica que pronunciou a frase pensava, mas sim uma reação típica de um ataque de pânico corriqueiro, tornado mais preocupante em razão do estado delicado de saúde do paciente. E ainda me chamam de paranóico...

Wesley PC>

PORQUE AGORA EU SINTO NA PELE, NA CARNE, NOS OSSOS, NA MENTE, NO CORAÇÃO (A ETERNA REPRISE):

“ – Não se deixa de amar quando não se vê a pessoa.
- Não?
- As pessoas não amam Deus mesmo sem terem visto-O?
- Esse não é meu tipo de amor!
- Talvez seja o único que exista”


E é por derramar tantas lágrimas e orações quanto a protagonista atéia de Julianne Moore que eu venho aqui me oferecer enquanto metonímia do sacrifico afetivo: como será que eu demonstraria meu amor a alguém que estivesse num estágio avançado de contaminação por sífilis? Seria esta o tipo de situação em que poderia validar adequadamente meu famoso jargão namoratório “te amo da cintura para cima”, que parece não ter dado muito certo na minha prática social até então... Chuif!

E eu já tinha escrito isto, já tinha usado esta mesma foto numa postagem, já tinha comentado o quanto é grandiosa esta seqüência, mas, até então, não tinha sentido tão forte na pele o que é converter um amor platônico plenamente irrealizável numa demonstração perene de amor a Deus: estou enlouquecendo de tanta necessidade de invocar o nome santo, tal qual o faz irmã Kelly Patrícia em sua extremada declaração de amor, “Vivo sem Viver em Mim”: “Esta divina prisão, do amor em que eu vivo, fez a Deus ser meu cativo, e livre meu coração; E causa em mim tal paixão ser eu de Deus a prisão”. Por isso, como condenar quem se filia ao temor abaixo?

Agora começo a te entender, Ó Deus, tu me esvazias de amor e depois me preenche com Teu amor!”

E, graças à obra-prima romântica igualmente extremada que atende pelo nome de “Fim de Caso” (1999, de Neil Jordan), deixei de ser ateu, imediatamente em seguida a dois dias de desamparo religioso que não quero nunca mais repetir em vida ou em morte ou em ‘post-mortem’. Afinal de contas, no supremo céu do “Paraíso” de Dante Alighieri, é o amor que ele descobre: “Ó luz que vives de teu próprio ardor, que em ti sentes, e és por ti sentida, quem em ti, e só por ti, és graça e amor!” (linhas 124-126 do Canto XXXIII). E enlouqueço mais e mais: tudo se repete!

Agora começo a te entender, Ó Deus, tu me esvazias de amor e depois me preenche com Teu amor!

E de novo:

Agora começo a te entender, Ó Deus, tu me esvazias de amor e depois me preenche com Teu amor!”

E de novo:

Agora começo a te entender, Ó Deus, tu me esvazias de amor e depois me preenche com Teu amor!”

E de novo:

Agora começo a te entender, Ó Deus, tu me esvazias de amor e depois me preenche com Teu amor!”

E de novo:

Agora começo a te entender, Ó Deus, tu me esvazias de amor e depois me preenche com Teu amor!”

E de novo:

Agora começo a te entender, Ó Deus, tu me esvazias de amor e depois me preenche com Teu amor!”

E de novo:

Agora começo a te entender, Ó Deus, tu me esvazias de amor e depois me preenche com Teu amor!”


E de novo:

(...)

Wesley PC>

“EXCESSO DE RELIGIÃO E SEXO: RECEITA DE SUCESSO!”

Tinto Brass, Tinto Brass, Tinto Brass! Somente ele para ser tão incisivo neste meu começo de madrugada e pôr o adágio acima na boca de um escritor erótico que não consegue mais agradar sexualmente sua esposa em “Monamour” (2005), filme que pensava ser uma obra menor em sua filmografia, mas que terminou por ser um dos mais estetizados e encantadores. E autocomplacentes também, no melhor e mais útil sentido do termo: numa festa, alguém pergunta o porquê de, cada vez mais, arte e pornografia assemelharem-se. O próprio Tinto Brass ergue a mão e responde: “é que significante torna-se cada vez mais significado– e este era um dos pontos autos de um dos filmes eróticos mais inteligentes que vi em décadas!

“Monamour”, como é típico nas obras de Tinto Brass, é narrado pelo ponto de vista de uma mulher amargurada por estar insatisfeita. É uma mulher que ama realmente o seu marido, mas algo parece estar defeituoso no plano da satisfação sexual, a ponto de ela necessitar fantasiar com outros homens e mulheres. E, mesmo sendo filmado através do ponto de vista feminino, o diretor, roteirista e montador Tinto Brass não perde a chance de mostrar esta mulher por dentro: os primeiríssimos planos mais ginecológicos da História do Cinema perigam se encontrar aqui, chegando ao paroxismo de, numa cena antológica, um amante francês fotografar a vagina da protagonista e comparar com uma reprodução do famoso e polêmico quadro de Gustave Courbet, “A Origem do Mundo”. Perfeito!

Logo na primeira cena, algo atípico (e bem-vindo) nos filmes de Tinto Brass: um legítimo pênis masculino e não aquelas próteses gigantescamente bizarras que, volta e meia, surgem em meio aos delírios fogosos de suas protagonistas. Aqui não será diferente, mas há espaço para dois pênis de verdade. Estes têm a função de isentar a protagonista de sua insatisfação marital recém-adquirida: o marido dela dorme logo após o gozo, enquanto ela precisa masturba-se enquanto urina. Onde fica a câmera nesse instante? Beirando – ou melhor, quase ultrapassando – o útero da atriz principal, a bela, sedutora e quase inocente Anna Jimskaia. Apaixonei-me por ela, no ato! Eu e qualquer espectador decente, que chega a se impregnar do cheiro da xoxota dela, de tanto que a mesma é focalizada em ‘close-up’ pelas câmeras tipicamente ginecológicas do mestre italiano. A trilha sonora é bufona como de praxe, mas, ao contrário da tendência que o divertido e inferior “Faça Isto!” (2003) parecia anunciar, o roteiro é dramático, tanto quanto o épico íntimo “Paprika” (1991), o aconselhador “Todas as Mulheres Fazem” (1992) ou o existencialista “O Voyeur” (1994). E, nesse sentido, o brilhantismo das seqüências eróticas merece destaque para além da excitação inevitável que opera na platéia. Afinal de contas, aquele quase-estupro consentido em meio aos afrescos portentosos de uma galeria de arte pode ser chamado de mero oportunismo erotógeno? E a execução de “Non, Je Ne Regrette Rien” quando a protagonista é convidada a fugir para a França com seu amante parisiense? E aquela hilária situação de urina conjunta, em que uma mulher sai do banheiro e diz que “o cu não serve apenas para fazer cocô”? Se o ritmo do filme não caísse um pouco em sua segunda metade – afinal de contas, repetitiva, como sói acontecer em filmes eróticos, mesmo os de qualidade superior – eu gritaria aqui: OBRA-PRIMA!

Mesmo não o sendo, “Monamour” é laureado por detalhes extáticos surpreendentes, que, no plano enredístico, correspondem ao brilhantismo de uma seqüência tragicômica do já citado “Paprika”, quando uma prostituta enfarta no meio de uma transa, num bordel, e um médico que fodia no local diz que “ela não tem mais salvação, está morta, precisa de um padre”, e este surge, no mesmo bordel, levantando a batina arriada, a fim de lhe conceder a extrema-unção. Tinto Brass não é um polemista gratuito, ele escolhe seus alvos de crítica a dedo. Neste seu mais recente filme – até que saia a aguardada continuação das intrigas palacianas da era de Calígula, no ano que vem – a hipocrisia dos semióticos, dos beatos, dos infiéis, dos símbolos sexuais e dos próprios consumidores de pornografia (artística ou não) é posta em xeque. Fui atacado diretamente por este filme que, insisto, pensava ser uma obra menor na carreira elogiosa deste gênio pervertido. Não é. É um de seus filmes mais geniais enquanto conceito. Ótimo mesmo. E pouquíssima gente viu, é subestimado até mesmo por seus fãs. Está na hora de acabar com esta injustiça: à praça, Tinto Brass, já!

Wesley PC>

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

OS FILMES QUE VEJO POR CAUSA DE OUTREM – PARTE III: VLADIMIR CARVALHO ENTRA EM CONFLITO COM MEUS PRÉ-CONCEITOS UNIVERSITÁRIOS!

Recentemente, o irmão de um rapaz que trabalha comigo pediu-me emprestado uma cópia de “O País de São Saruê” (1971), filme de Vladimir Carvalho venerado pela crítica em razão de seu apelo histórico e social sobre os efeitos da seca e da exploração do homem pelo homem numa região anteriormente colonizada pelos portugueses e povoada por indígenas chamada Rio do Peixe, na fronteira do Rio Piranhas, em Paraíba. Solicitei uma cópia do filme ao marido de uma grande amiga minha, que, ao me entregar o DVD, antecipou-se em dizer que não gostava muito do estilo documental de Vladimir Carvalho, que este cineasta, definitivamente, não estava entre os seus favoritos. Munido desta observação pré-conceptual, tentei ver o filme no domingo passado, mas o DVD estava com defeito. Hoje à noite, eu consegui vê-lo na íntegra. E houve mais induções pré-conceptuais do que aquelas disseminadas por meu amigo, dono do DVD.

Construído poeticamente a partir de um folheto de cordel de Manoel Camilo dos Santos, a narração de “O País de São Saruê” incomodou-me um pouco porque as rimas (profusas em “ão”, conforme relata um dos versos) vão de encontro à rusticidade das imagens e, em minha opinião, dificulta um julgamento estético condizente com as pretensões do seu autor – porque sim, ele tem visíveis pretensões ao realizar esta obra! – e abre espaço para interpretações mais gerais, alicerçadas em arcabouços diversos (o que é bom), mas que, em meu juízo deveras particular, soou pré-conceituoso. Nutro uma simpatia sobressalente pelas regiões sertanejas, tenho o sonho íntimo de morar numa zona rural em algum momento tardio de minha vida e, ouso confessar, já passei fome. Sim, já passei fome e é com vergonha que lembro forçadamente de duas situações vexatórias de minha infância tipicamente depauperada: quando eu e meu irmão caçula apanhamos de nossa mãe pobre porque nos recusávamos a sair de porta em porta, com um carrinho de mão, perguntando se alguém queria comprar plantas (que era só o que tínhamos para trocar por dinheiro – e depois por comida – na situação em pauta); e outro dia em que minha mãe pediu que eu oferecesse algumas jóias velhas à minha madrinha comerciante de bugigangas em troca de alguns mantimentos, que, afinal, foram-nos de graça. Houve outras, mas estas duas me são suficientemente traumáticas e me autorizam a avaliar a situação de penúria de alguns nordestinos como sendo mais um problema administrativo do que necessariamente de exigüidade material. Parece óbvio hoje, mas na época não era. Para Vladimir carvalho, era. Por isso, ele ganhou a minha admiração pela extraordinária utilização de uma entrevista racional com o prefeito do lugar, numa das últimas cenas do filme, que esclarece que, se as pessoas ali são pobres, é porque há quem se beneficie com sua pobreza. Mas não ponhamos o carro na frente dos bois. Há ainda o que ser falado sobre as cenas iniciais do filme.

Se, para muitos espectadores, é repleta de beleza a cena em que vaqueiros marcando um boi cede lugar à lúdica representação do mesmo ato, através da folclórica encenação do Bumba-Meu-Boi, para mim, vegetariano e um tanto elitista no plano cultural, não fui facilmente fascinado pelo momento (se bem que já o fui ‘in loco’), da mesma forma que me incomodei negativamente pela cena de triste auto-suficiência em que um sertanejo atira num pássaro para ter o que oferecer de comer ao seu filho pequeno, enquanto a câmera focaliza um pássaro canoro preso numa gaiola da mesma residência de taipa. Em cenas com apreensão individual tão conflituosa quanto o são estas é que eu pude perceber o quanto ainda sou eivado por preconceitos (sem hífen mesmo) aos costumes populares mais básicos das populações nordestinas. Não entendo adequadamente os sacrifícios a que os sertanejos são diuturnamente apresentados no afã por saciar a mais xucra necessidade alimentícia e sou obrigado a assumir aqui, ainda mais vergonhosamente do que antes, que, se não gostei tanto do filme quanto eu devia, é porque sou um suburbano descarado, manipulado a torto e a direito por teorias sociológicas que muito quantificam e pouco vivificam.

Por outro lado, o cuidado com que a câmera expõe um quadro de Getúlio Vargas (o “pai dos pobres”) no gabinete do prefeito, a pesagem injusta da colheita de algodão, a desviante inserção de comentários sobre a “febre do ouro” no lugar e, principalmente, os comentários sobre a introdução da globalização numa feira local são assuntos que eu me sinto apto a comentar com certo timbre conteudístico, devido principalmente ao que Ismael Xavier me possibilitou ler em sua perfeita análise de “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1969, de Glauber Rocha), contida no livro “Alegorias do Subdesenvolvimento”. Deste capítulo exemplar de livro de crítica cinematográfica mui penetrativa, jamais esquecerei do detalhe observado sobre as latas de óleo diesel que, no sertão, são reaproveitadas enquanto vaso de flores. Em “O País de São Saruê”, vemos uma embalagem de óleo Havoline ser utilizada como cuia para retirar água duma cumbuca, enquanto cidadãos comuns escolhem sandálias estrangeiras no meio da feira. Na trilha sonora, Roberto Carlos e seu “Quero que Tudo Vá Pro Inferno”. Crítica pungente e largamente compreensível!

Noutras situações, vemos o roteiro do documentário confundir seu périplo incluindo uma elegia de Luiz Gonzaga sobre a colheita do algodão e sobre a amostragem de fotografias históricas e desenvolvimentistas da região ou um depoimento de um voluntário estrangeiro que protestara, do sertão brasileiro, contra o envio de soldados norte-americanos à Guerra do Vietnã. É um filme com problemas, insisto. Não gostei por completo, mas, vendo ele na noite de hoje, lembrei que o rapaz que calha de ser irmão do homem feito que me pediu o DVD emprestado em breve estará trabalhando como professor na cidade campesina natal de sua família e, brincando, disse que estabilizará sua vida depois que engravidar uma aluna e for obrigado a se casar a pulso, juntar um dinheiro para honrar o nome da família vindoura e morrer velhinho e amado pelos netos. Quem poderia aqui o condenar?

Eu não posso e, como tal, deixo sub-reptícia mais uma insatisfação pessoal ao filme com base no trecho final do folheto de cordel de Manoel Camilo dos Santos, apenas evocado, mas não citado ‘ipsis litteris’ no filme:

“Vou terminar avisando
A qualquer um amiguinho

Que quizer
(sic) ir para lá [para o País de São Saruê]
Posso ensinar o caminho,
Porém só ensino a quem
Me comprar um folhetinho


Fome não é mais justificativa. Mas ainda explica – e muito!

Wesley PC>

SENSAÇÃO DE DESPERDÍCIO + SIMPATIA + TÍTULO TRADUZIDO DE CANÇÃO DO MORRISSEY:

Acabo de ver “Temporada de Patos” (2004), do mexicano Fernando Eimbcke, na TV aberta. O filme começa muito bem e termina mal. Dois meninos sozinhos na casa de um deles, cujos pais estão se separando. Uma vizinha que quer preparar bolo. Falta de energia elétrica. Um entregador de pizzas melancólico e saudosista. Beijos na cozinha, maconha nos biscoitos. Homossexualismo juvenil encubado. Patos voando em forma de V. Começa tão bem e termina tão mal...

E, aos pouquinhos, dezembro vem se aproximando. Custa aproveitar mais o hoje do que preocupar-se com o amanhã que pode sequer nem ser vindouro? O “silêncio de Deus”, por vezes, parece mais fácil de suportar – porque compreensível – que o dele, dele com letra minúscula. E Morrissey canta: “Sorries pour out of you/ All wide-eyed simple smiles/ certain to see you through/ like a QC full of fake humility/ you say: ‘Oh, please forgive...’/ you say: ‘Oh, live and let live...’/ but sorry doesn't help us/ and sorry will not save us”. E, no caso em pauta, quem pede desculpas em vão sou eu: DESCULPE-ME!

Wesley PC>

domingo, 14 de novembro de 2010

“OSANNA, SANCTUS DEUS SABAOTH, SUPERILLUSTRANS CLARITATE TUA/ FELICES IGNES HORUM MALACOTH!” (‘PARAÍSO’, CANTO VII)

E, assim, penetro com Dante Alighieri, o personagem onírico, e sua amada Beatriz nos meandros do “Paraíso”, derradeiro estágio de “A Divina Comédia” (publicada no século XIV). E, se no “Inferno” e no “Purgatório”, deambulamos juntos através de vários ciclos contíguos de expiação e sofrimento, no céu, a escalada redentora legitima a mesma contigüidade. Ainda estou à porta do terceiro céu, o céu de Vênus, depois de ter encontrado os religiosos no céu lunar e os famosos no céu de Mercúrio, tendo recebido a honra de ouvir, da boca pia de Beatriz, a solução responsiva para a questão do poder que a violência exerce sobre a vontade de outrem, através dos seguintes e belos versos:

“Se a força existe quando alguém a usa
Em nada o que a padece alarga ou cede,
Não se segue daí que a alma se escusa,
Pois a vontade, que não retrocede,
É como o fogo que ressurge ardente
A cada vez que a ventania o impede.
Quem aceita a opressão nela consente;
As que viste o fizeram, lado a lado,
Deixando de ir ao claustro novamente”.


E eu tomo esta como minha primeira grande lição neste tomo derradeiro de uma das obras mais célebres da Literatura Mundial. Amo a Deus, bem como às suas criações na Terra. E, dentre estas, conforme já anunciado, minha Beatriz tem nome de tio e de homem. E que me venham agora os ensinamentos das almas confinadas no terceiro céu, aquelas que, “sensíveis ao amor físico, lograram obter, contudo, a salvação”. Magnificat anima mea Dominum!

Wesley PC>

“TU ÉS INCORRIGÍVEL!”, DIZ UM CRUSTÁCEO À APAIXONADA SEREIA

Revi, na manhã de hoje, o clássico recente “A Pequena Sereia” (1989, de John Musker & Ron Clements) pela terceira vez. Não tenho uma relação tranqüila com este filme (conforme pode ser antevisto aqui), mas uma nova perspectiva espectatorial me pungiu nesta terceira visão: entrei na casa de uma vizinha para conversar com seus filhos, quando vejo uma criança de 3 anos prostrada diante de uma tela de TV, vendo justamente o filme agora comentado. Ainda estava no começo e, repentinamente, me vi seduzido pela ambigüidade de todo o contexto. Se aquele era um filme destinado ao público infantil – ou, pelo menos, estava a funcionar assim para quem permitiu que aquela criança de 3 anos ficasse tão perto da TV para acompanhá-lo melhor! – como estaria sendo processada na mente daquela pequena espectadora a informação de que Ariel estava “amando”?

Para quem não viu o filme: Ariel é uma princesa marítima que, ao contrário de suas irmãs mimadas, não se interessa muito pelo ócio da côrte e, ao invés disso, prefere colecionar objetos humanos atirados ao mar (leia-se: lixo transformado em fetiche). Numa de suas coletas objetais, depara-se com um belo rapaz num barco e deseja beijar-se com ele, mas, para isso, precisa tornar-se humana. Seduzida que foi pelos golpes sujos da bruxa Úrsula, ela consente em sacrificar a própria voz para ter pernas no lugar de nadadeiras, mas sua voz é justamente o elemento que fez com que o humano ficasse apaixonado por ela. “Como vou conseguir conquistar o homem que amo se ele não pode ouvir minha voz?”, pergunta Ariel à bruxa, que responde, mostrando a bunda volumosa: “todo homem sabe interpretar outras formas de linguagem corporal”. O que será que a criança de 3 anos extraiu a partir desta argumentação?!

Segui em frente e novos problemas éticos eram atirados como meros chistes roteirísticos diante da platéia, como, por exemplo, a complicada seqüência em que o siri Sebastião tenta se esquivar de um cozinheiro humano que quer servi-lo como comida no jantar em que Ariel é convidada. Interrogação nº 1: depois de convertida em humana, ela achará normal alimentar-se dos peixes que, até então, eram seus súditos e irmãos? Interrogação nº 2: é lícito rir de um complicado dilema alimentício como este? Interrogação nº 3: “o beijo do verdadeiro amor” que Ariel precisa dar em seu amado e que não é “qualquer beijo” – não soa fisiologicamente anacrônico para o entendimento infantil, visto que enseja um eufemismo pré-sexual?

E eu seguia a escandalizar-me diante da sessão, mas, puxa, como o filme é bom! Como ele fica ainda melhor, mesmo contraditório e dúbio em diversas seqüências, à medida que é revisto! Porém, imbuído de um sentimento de protecionismo infantil que eu estava, perguntei à guardiã da criança se não era melhor retirá-la de tão perto da TV, visto que ela estava há mais de 5 horas ininterruptamente diante do aparelho. Como resposta, ouvi: “é melhor assim. Pelo menos, ela não fica malinando!”. Eis a geração de crianças que os futuros professores de História tentarão educar!

Wesley PC>

AINDA TENHO MUITO O QUE (TE) DIZER...

Depois que redigi o conteúdo da postagem anterior, fui tomado por um sentimento de culpa. Um sentimento não facilmente identificável (pelo menos no que diz respeito ao foco), mas perfeitamente reconhecível: é culpa. Culpa por falar demais, culpa por saber que, ainda assim, falei de menos. Enquanto tentativa desesperada primária de expiação, enviei uma mensagem de celular para um rapaz católico e pedi que ele rezasse por mim, mas, hoje em dia, ele considera pedir algo a Deus tão inócuo quanto debater noções galicistas de educação num evento universitário repleto de professores elitistas. Tive, portanto, que recorrer a outras formas de purgação confessional.

Liguei o rádio, ouvi uma coletânea de canções do The Cure e, enquanto preparava algo para comer, decidi ver aquele que entrou para a História como “o primeiro filme ‘gay’ produzido sob a égide da Alemanha Oriental”, extinto país dividido, murado e forçadamente comunista. Na trama do filme [“Coming Out” (1989, de Heiner Carow)], um professor de Literatura Germânica, fortemente influenciado por Bertolt Brecht e Johann Wolfgang von Goethe, esconde sua homossexualidade ao pedir em casamento uma professora que leciona na mesma escola que ele, com quem tromba acidentalmente num corredor. Para seu azar, um namorado de adolescência, completamente humilhado pelos pais dele, é um dos melhores amigos de sua noiva. E tudo volta à tona: não se pode esconder por muito tempo quem se é. Numa festa regada a bebedeira e espetáculos de transexuais, o professor se apaixona por um moço de 19 anos que tentara se suicidar na passagem de Ano Novo. Mas ele não dispõe de forças suficientes para assumir quem ele é. Ousa defender um negro que é espancado por ‘skinheads’ no metrô, mas não tem coragem de dizer à sua mãe que está apaixonado por outro homem. E o filme segue em frente, timidamente, reivindicando o simples e básico direito de amar, tendo o seu paroxismo dramático no encontro com um sobrevivente dos campos de concentração nazista, que explica para o protagonista o que foi usar o triângulo rosa por alguns anos, enfrentar os ataques repetidos de uma guerra, ser acolhido por comunistas que exigiam militância ativa após a rendição alemã e, ainda assim, ser proibido de exercer livremente a sua sexualidade. O socialismo é regido por uma moral estreita, como todos sabem, ao menos no plano da expressão sexual.

Para além dos vários defeitos do filme, a sua validade histórica e os seus clamores expressivos beirando a metalinguagem enredística expurgaram-me por alguns instantes. Sinto-me mais tranqüilo agora, sinto que não tenho do que me arrepender quando insisto em falar a verdade, ou, ao menos, o que entendo como verdade. E, por dentro, fico ainda tentando processar o que aquela canção iconoclasta, recitada num momento-chave do filme, quis me dizer:

“Minha mãe não me chama pelo nome
Minha mãe está morta
Meu pai não me chama pelo nome
Meu pai está longe
Deus não me chama pelo nome
Ele segue apenas seus próprios desígnios
Por isso, Ele uiva como um vira-lata
Enquanto eu tento enxotá-lo com um pau.
Tente viver sem Deus.
Oh, tente viver sem Deus!”


Eu, pelo contrário, só concebo a minha existência em Deus – e aceito-O, até mesmo como um vira-lata!

Wesley PC>