quarta-feira, 1 de abril de 2009

E, MAIS UMA VEZ, PROVA-ME O CINEMA IRANIANO QUE A VIDA É MAIOR E MELHOR QUE A MORTE!


Como começar esta observação crítica? Antecipando que vi um filme iraniano, com quase 2 horas de duração, dublado em italiano e sem legendas? Confessando que, durante toda a projeção, o mal-estar vitalício recente de Rafael Maurício não me saiu da cabeça? Dizendo que, mesmo sendo fã do cineasta Abbas Kiarostami e conhecendo algumas de suas marcas registradas, fui completamente tomado de surpresa frente a “O Vento Nos Levará” (1999) e digamos que ainda esteja a recompor meus pensamentos e sensações diante desta verdadeira obra de arte enigmática que se postou diante de minha fome e sensibilidade? Tentemos fazer todos estes começos de uma só vez!

Sabia que o filme estava sem legendas e que estava dublado em italiano, uma língua com que cria não ter muita habilidade receptiva. Entretanto, não havia visto o filme ainda e qualquer coisa dirigida pelo Abbas Kiarostami merece a minha atenção redobrada, nem que fosse apenas para contemplar as imagens e a música do final. Arrisquei-me, ciente de que, imbuído de um inevitável antropocentrismo ocidental, o filme seria, antes de tudo, exótico e silencioso. Enganei em ambas as especulações preconceituosas: o filme, rodado a milhares e milhares de quilômetros de onde escrevo agora, mostra a vida de pessoas tais como eu e tu e é particularmente verborrágico, visto que as pessoas não param de conversar, de tentarem se comunicar, de resistirem à paralisia verbal que o Capitalismo tenta instituir em seus projetos de passividade de massa. Porém, é um filme que toca direto na alma do espectador. Tudo fruiu, portanto.

A trama combina elementos de vários filmes anteriores do diretor, em especial “Vida e Nada Mais (E a Vida Continua...)” (1992) e “Gosto de Cereja” (1997), dado que mescla o colaboracionismo estrito entre vizinhos e os conflitos éticos de um cineasta do primeiro filme e o questionamento individual do sentido da vida concernente ao segundo. Como havia tido uma conversa telefônica muito estranha com meu atormentado amigo Rafael Maurício antes do início da sessão, é a ele que dedico qualquer conclusão advinda da comunhão investigativa entre esses três extraordinários filmes. Sigamos em frente: na trama de “O Vento nos Levará”, um produtor de televisão de Teerã dirige-se a um vilarejo do interior a fim de acompanhar os tradicionais rituais fúnebres de uma anciã de mais de 100 anos, que teima em morrer. Disfarçando-me sob a titulação de engenheiro, este produtor viverá entre estas pessoas simples e conhecerá de perto seus problemas e pequenas ambições, ao passo que é duplamente pressionado pelos seus conterrâneos citadinos, que pedem que ele volte para casa em virtude da doença de sua mãe e que ele adiante logo as filmagens, o que, obviamente, depende da morte da anciã (a qual, obviamente, ele não pode adiantar).

Partindo deste mote enredístico bastante simples, o roteiro detém-se no relacionamento do protagonista com um garotinho, que vive esmagado entre a escola e os trabalhos rurais, até que, quando flagrado num exame, ele não sabe o que responder quando o professor lhe pergunta “para onde vão os bons e os maus após o Juízo Final?”. Outra situação recorrente no filme é a necessidade de o “engenheiro” protagonista precisar locomover-se continuamente até uma colina mais elevada, a fim de que seu telefone funcione e lá descobre que está pisando num cemitério, por sua vez escavado para abrigar torres de telefonia. Conversa com um funcionário escavador, visando descobrir onde pode conseguir leite. Encontra um fêmur no chão e um quelônio que passeia sobre as lápides. Num lapso de crueldade súbita, chuta o cágado, que sobrevive, que se desdobra e segue seu lento e inexplicável percurso de vida, enquanto o “engenheiro” volta para a sua estadia forçada no vilarejo, enquanto espera a morte de sua anciã vizinha.

Contar mais iria estragar a descoberta que este filme causa, por isso, interrompo aqui o meu relato, enquanto não consigo esconder a verdadeira sensação epifânica que agora me toma, a minha extremada propensão à estase [palavra designativa de um estado físico que presta reverência ao (que sinto pelo) “Perfeito”] advinda da percepção continua de que não somente estou vivo, como é maravilhoso reperceber minuciosamente esta sensação. Neste sentido, convoco a atenção de meu amigo distante Wendell ∞-gato para descrever uma derradeira seqüência, uma das mais extraordinárias do filme: num plano belissimamente aberto, o “engenheiro” pega carona na motocicleta de um médico, que se recusa a ter uma especialidade, a fim de que, assim, possa tratar das moléstias que acometem qualquer parte do corpo. Em dado momento, o “engenheiro” pergunta ao médico se ele se incomoda que ele fumasse. O médico então responde: “por que eu me incomodaria? Se tu estás vivo, como poderia eu me incomodar que tu faças qualquer coisa que tu desejas? Mas aproveito a oportunidade para te pedir para respirar este ar puro da montanha e perceber o quanto a natureza é bela”... Deixo a quem quiser a capacidade de imaginar o que acontece em seguida, enquanto não temos a oportunidade de ver o filme juntos. Detalhe: o cigarro não será apagado. Fiquem tranqüilos, pois Abbas Kiarostami não incorre no moralismo repressor!

E agora me vem outro dilema: como encerrar esta observação crítica? Vangloriando-me, sem intenções auto-elogiosas, de que consegui obter fruição num filme iraniano, com quase 2 horas de duração, dublado em italiano e sem legendas? Confessando que, durante toda a projeção, o bem-estar vindouro e participativo de Rafael Maurício não me saiu da cabeça? Pois é, como bem o filme mostra, não está ainda na hora de encerrar...

“E tu, ó verdejante, estendes tuas mãos – estas lembranças ardentes – sobre minhas mãos apaixonadas e confias teus lábios, cheios que são do calor da vida, às carícias dos meus lábios apaixonados. O vento nos levará! O vento nos levará!"

Wesley PC>

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