terça-feira, 2 de junho de 2009

A PROBLEMATIZAÇÃO DA MEMÓRIA MUDA COM O TEMPO?


Entre o final da década de 1950 e o começo da década de 1960, o cineasta Frances Alain Resnais compôs três excelentes filmes sobre o uso e o poder reflexivo da memória no cinema: “Hiroshima, Meu Amor” (1959, com base em roteiro de Marguerite Duras), “O Ano Passado em Marienbad” (1961, com base em roteiro de Alain Robbe-Grillet), e “Muriel” (1963, com base em roteiro de Jean Cayrol). Essa trilogia de filmes mnemônicos, por si só, consolidou eternamente o nome de Alain Resnais como um dos maiores autores de cinema, daqueles que possuem marcas registradas não somente no conteúdo, como também na forma, visto que os ‘faux raccords’ (cortes falsos no eixo da montagem angular) são comuníssimos em suas obras. Com o passar dos anos, entretanto, Alain Resnais abrandou o hermetismo destas obras-primas e realizou filmes um tanto acessíveis, em que seus problemas insistentemente memoriais.

Discretamente, este parágrafo inicial prepara a oportunidade para que eu diga que acabo de ver “Smoking” (1993), obra contemporânea do diretor-autor e, por mais que eu tenha ficado surpreso com a inventividade roteirística da obra, não pude deixar de me frustrar com o teor acentuadamente burguês na composição dos personagens, em que o adjetivo pejorativo “possidônia” é o tipo de ofensa rápida de que um home se vale para criticar o comportamento fútil de sua esposa. Mas vamos antes ao elogio: por que eu disse que este filme é inventivo, mesmo admitindo e irritando-me com seu elitismo doméstico? Uma síntese do pensamento do comunicólogo Arlindo Machado sobre “as formas expressivas da contemporaneidade” é essencial em tal resposta.

Segundo este teórico, tão odiado por estudantes sérios no que diz respeito às conotações eminentemente políticas da cultura de massa, as três principais características definidoras das mídias contemporâneas são a multiplicidade, a metamorfose e a permutabilidade. As duas primeiras são fáceis de serem percebidas e compreendidas, enquanto a terceira, que diz respeito ao estimulo à “co-autoria” do espectador no que se refere à escritura das obras de arte narrativas encontra eco perfeito no filme que, junto a “No Smoking” (1993), forma um díptico palimpsesto, em que simples opções como “fumar ou não fumar um cigarro?” abre inúmeras comportas no tempo, de modo que várias ramificações possíveis para o destino das mesmas pessoas são apresentados para o espectador, que, se quiser, pode escolher o seu desfecho preferido para as tramas apresentadas.

No caso do filme que acabo de ver, “Smoking”, a protagonista Celia Teasdale (Sabine Azéma) fuma. Ao fazê-lo, conversa com o empregado da escola em que seu marido é diretor (ambos os personagens masculinos interpretados por Pierre Arditi), que se revela apaixonado por ela. Este, por sua vez, desperta a atenção de Sylvie (empregada da casa dos Teasdale, interpretada por Sabine Azéma), que se acha muito rústica e tem aulas de literatura e etiqueta com seu patrão, Toby Teasdale (também vivido por Pierre Arditi), apaixonando-se por ele a posteriori. Porém, à medida que a trama do filme se desenrola (e seus únicos dois atores desdobram-se numa dezena de personagens), novas paixões e reuniões afetivas são apresentadas. Ao final das quase duas horas e meia de projeção deste primeiro filme do díptico, o espectador está mnemonicamente chafurdado por trocentas possibilidades de condução narrativa com base num mesmo pretexto: amores nascem e são rejeitados pelas condições preconceituosas duma sociedade centrada nas exigências de classe. Por mais cansativa que a experiência possa parecer eventualmente, o intento autoral é, no mínimo, precioso.

Porém, Alain Resnais tematicamente talvez não seja o mesmo: seus questionamentos sobre a memória e sobre o quanto o amor é a força-motriz dos mesmos agora se mostram perpassados por banalidades pequeno-burguesas, conforme se pôde perceber no superestimado “Medos Privados em Lugares Públicos” (2006). Esperemos o lançamento brasileiro do recente “As Ervas Daninhas” (2009) para saber como andam a memória e a autoralidade do ainda genial Alain Resnais...

Wesley PC>

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