segunda-feira, 1 de junho de 2009

EU ACREDITO NA AMIZADE!


São 2h40’ da manhã. Tenho que me acordar em pouco menos de três horas para ir ao trabalho, mas, ainda assim, não posso me furtar de escrever algumas linhas sobre o filme paradigmático que acabo de rever: “Cova Rasa” (1994), filme de estréia do inspiradíssimo escocês Danny Boyle, obra que me tornara um paranóico em relação às pessoas que me cercavam antes de entrar para a UFS, quando eu era um misantropo longevo. Acabo de rever o filme e o efeito foi bem outro: não sou mais aquele – nem tampouco o Danny Boyle, infelizmente, que cometeu um detestável erro ao se meter com a exploração da miséria alheia num filme rodado na Índia e vencedor de inúmeros prêmios técnicos. Que saudades de sua montagem rápida, de seus diálogos sarcásticos, de suas trilhas sonoras pertinentemente escolhidas, de seu talento inédito e sobressalente...

Sobre o que é o filme: três amigos (um contador, um jornalista e uma médica) dividem um apartamento. Por razões pouco importantes, eles resolvem dividir o aluguel com mais uma pessoa. Após uma série de entrevistas frustradas, chegam a um consenso e escolhem um misterioso homem, que se faz passar por escritor. Sabemos de antemão, porém, que ele é um criminoso. Ele morre de overdose no quarto e deixa uma maleta repleta de dinheiro no quarto. Os amigos resolvem ficar com a grana e anuem em eliminar o corpo, que é mutilado, esmiuçado e posteriormente enterrado. Mas o criminoso tinha comparsas, que logo descobrem o apartamento onde ele estava vivendo. Dois dos amigos são espancados. Um terceiro, o contador, torna-se psicótico em relação ao dinheiro. Larga o trabalho, passa a se esconder permanentemente no sótão, mata os comparsas do bandido morto e... Não, não vou contar o resto da trama, que é absolutamente surpreendente. Ao invés disso, prefiro dizer que o ótimo roteiro de John Hodge não poupa nenhuma instituição consagrada: todos são culpados de tudo hoje em dia, ninguém merece crédito. “É um mundo fedorento”, diria o mendigo espancado num clássico de Stanley Kubick, recentemente citado e infinitamente elogiado, a quem Danny Boyle pretsa bastante reverencia estilística.

Não tem como não pensar em Gomorra ao ver esse tipo de filme. Não que nossos companheiros de casa possam ser igualmente corrompidos como se vê no filme, mas porque o mundo hodierno é inequivocamente cerceado pela desconfiança. Na volta para casa, hoje mais cedo, Jéssica Nascimento comemorava a existência de Gomorra enquanto local de diversão (ir)restrita. Pouco tempo depois, ela me antecipou que sua co-cunhada Eliane Charnoski pensa em morar sozinha, o que é completamente entendível, dado o seu ritmo de vida contrastante com a boemia avassaladora dos outros moradores. Rafael Coelho não mais estará lá para compartilhar as contas, afazeres e diversões. Bruno/Danilo é pouco visto em casa. Jeane é reservada em suas predileções interativas. E Luiz Ferreira Neto é instável por natureza. Haverá espaço para o Cine-Gomorra no futuro? Torço para que sim, mas um inevitável realinhamento é exigido. Comunalmente, diga-se de passagem. Anseio, desde já, por qualquer orientação.

Voltando ao filme: as conseqüências da corrupção são terrivelmente violentas. Os três amigos voltam-se letalmente uns contra os outros. A terna e nostálgica canção “Happy Heart” (na voz de Andy Williams) é executada na trilha sonora, enquanto rememoramos uma gargalhada em câmera lenta que não terá mais volta. Passo, portanto, a palavra ao narrador vilanesco do filme, interpretado pelo austero Christopher Eccleston, que trabalhará outras vezes com o diretor Danny Boyle:

Eu não me envergonho. Eu conheci o amor e conheci a rejeição. Não tenho vergonha de declarar meus sentimentos: considere a amizade, por exemplo, ou a confiança. Estas são coisas muito importantes na vida. Estas são as coisas que importam, as que fazem seguir nosso caminho. Se tu não podes confiar em teus amigos, então... O que resta? O que resta? Oh, sim, eu acredito em meus amigos. Eu acredito que preciso deles. Mas, se um dia, tu não puderes mais confiar nos amigos, o que retsa? O que resta?”. Em dado momento, percebemos que quem narra isto está morto. Portanto, o que resta? Longa vida à Gomorra!

Wesley PC>

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