segunda-feira, 15 de novembro de 2010

OS FILMES QUE VEJO POR CAUSA DE OUTREM – PARTE III: VLADIMIR CARVALHO ENTRA EM CONFLITO COM MEUS PRÉ-CONCEITOS UNIVERSITÁRIOS!

Recentemente, o irmão de um rapaz que trabalha comigo pediu-me emprestado uma cópia de “O País de São Saruê” (1971), filme de Vladimir Carvalho venerado pela crítica em razão de seu apelo histórico e social sobre os efeitos da seca e da exploração do homem pelo homem numa região anteriormente colonizada pelos portugueses e povoada por indígenas chamada Rio do Peixe, na fronteira do Rio Piranhas, em Paraíba. Solicitei uma cópia do filme ao marido de uma grande amiga minha, que, ao me entregar o DVD, antecipou-se em dizer que não gostava muito do estilo documental de Vladimir Carvalho, que este cineasta, definitivamente, não estava entre os seus favoritos. Munido desta observação pré-conceptual, tentei ver o filme no domingo passado, mas o DVD estava com defeito. Hoje à noite, eu consegui vê-lo na íntegra. E houve mais induções pré-conceptuais do que aquelas disseminadas por meu amigo, dono do DVD.

Construído poeticamente a partir de um folheto de cordel de Manoel Camilo dos Santos, a narração de “O País de São Saruê” incomodou-me um pouco porque as rimas (profusas em “ão”, conforme relata um dos versos) vão de encontro à rusticidade das imagens e, em minha opinião, dificulta um julgamento estético condizente com as pretensões do seu autor – porque sim, ele tem visíveis pretensões ao realizar esta obra! – e abre espaço para interpretações mais gerais, alicerçadas em arcabouços diversos (o que é bom), mas que, em meu juízo deveras particular, soou pré-conceituoso. Nutro uma simpatia sobressalente pelas regiões sertanejas, tenho o sonho íntimo de morar numa zona rural em algum momento tardio de minha vida e, ouso confessar, já passei fome. Sim, já passei fome e é com vergonha que lembro forçadamente de duas situações vexatórias de minha infância tipicamente depauperada: quando eu e meu irmão caçula apanhamos de nossa mãe pobre porque nos recusávamos a sair de porta em porta, com um carrinho de mão, perguntando se alguém queria comprar plantas (que era só o que tínhamos para trocar por dinheiro – e depois por comida – na situação em pauta); e outro dia em que minha mãe pediu que eu oferecesse algumas jóias velhas à minha madrinha comerciante de bugigangas em troca de alguns mantimentos, que, afinal, foram-nos de graça. Houve outras, mas estas duas me são suficientemente traumáticas e me autorizam a avaliar a situação de penúria de alguns nordestinos como sendo mais um problema administrativo do que necessariamente de exigüidade material. Parece óbvio hoje, mas na época não era. Para Vladimir carvalho, era. Por isso, ele ganhou a minha admiração pela extraordinária utilização de uma entrevista racional com o prefeito do lugar, numa das últimas cenas do filme, que esclarece que, se as pessoas ali são pobres, é porque há quem se beneficie com sua pobreza. Mas não ponhamos o carro na frente dos bois. Há ainda o que ser falado sobre as cenas iniciais do filme.

Se, para muitos espectadores, é repleta de beleza a cena em que vaqueiros marcando um boi cede lugar à lúdica representação do mesmo ato, através da folclórica encenação do Bumba-Meu-Boi, para mim, vegetariano e um tanto elitista no plano cultural, não fui facilmente fascinado pelo momento (se bem que já o fui ‘in loco’), da mesma forma que me incomodei negativamente pela cena de triste auto-suficiência em que um sertanejo atira num pássaro para ter o que oferecer de comer ao seu filho pequeno, enquanto a câmera focaliza um pássaro canoro preso numa gaiola da mesma residência de taipa. Em cenas com apreensão individual tão conflituosa quanto o são estas é que eu pude perceber o quanto ainda sou eivado por preconceitos (sem hífen mesmo) aos costumes populares mais básicos das populações nordestinas. Não entendo adequadamente os sacrifícios a que os sertanejos são diuturnamente apresentados no afã por saciar a mais xucra necessidade alimentícia e sou obrigado a assumir aqui, ainda mais vergonhosamente do que antes, que, se não gostei tanto do filme quanto eu devia, é porque sou um suburbano descarado, manipulado a torto e a direito por teorias sociológicas que muito quantificam e pouco vivificam.

Por outro lado, o cuidado com que a câmera expõe um quadro de Getúlio Vargas (o “pai dos pobres”) no gabinete do prefeito, a pesagem injusta da colheita de algodão, a desviante inserção de comentários sobre a “febre do ouro” no lugar e, principalmente, os comentários sobre a introdução da globalização numa feira local são assuntos que eu me sinto apto a comentar com certo timbre conteudístico, devido principalmente ao que Ismael Xavier me possibilitou ler em sua perfeita análise de “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1969, de Glauber Rocha), contida no livro “Alegorias do Subdesenvolvimento”. Deste capítulo exemplar de livro de crítica cinematográfica mui penetrativa, jamais esquecerei do detalhe observado sobre as latas de óleo diesel que, no sertão, são reaproveitadas enquanto vaso de flores. Em “O País de São Saruê”, vemos uma embalagem de óleo Havoline ser utilizada como cuia para retirar água duma cumbuca, enquanto cidadãos comuns escolhem sandálias estrangeiras no meio da feira. Na trilha sonora, Roberto Carlos e seu “Quero que Tudo Vá Pro Inferno”. Crítica pungente e largamente compreensível!

Noutras situações, vemos o roteiro do documentário confundir seu périplo incluindo uma elegia de Luiz Gonzaga sobre a colheita do algodão e sobre a amostragem de fotografias históricas e desenvolvimentistas da região ou um depoimento de um voluntário estrangeiro que protestara, do sertão brasileiro, contra o envio de soldados norte-americanos à Guerra do Vietnã. É um filme com problemas, insisto. Não gostei por completo, mas, vendo ele na noite de hoje, lembrei que o rapaz que calha de ser irmão do homem feito que me pediu o DVD emprestado em breve estará trabalhando como professor na cidade campesina natal de sua família e, brincando, disse que estabilizará sua vida depois que engravidar uma aluna e for obrigado a se casar a pulso, juntar um dinheiro para honrar o nome da família vindoura e morrer velhinho e amado pelos netos. Quem poderia aqui o condenar?

Eu não posso e, como tal, deixo sub-reptícia mais uma insatisfação pessoal ao filme com base no trecho final do folheto de cordel de Manoel Camilo dos Santos, apenas evocado, mas não citado ‘ipsis litteris’ no filme:

“Vou terminar avisando
A qualquer um amiguinho

Que quizer
(sic) ir para lá [para o País de São Saruê]
Posso ensinar o caminho,
Porém só ensino a quem
Me comprar um folhetinho


Fome não é mais justificativa. Mas ainda explica – e muito!

Wesley PC>

2 comentários:

tatiana hora disse...

interessante ler o seu texto sobre este filme, ainda mais porque faz tanto tempo que eu o vi, e não me recordo bem...

esse e outros documentários brasileiros antigos com viés sociológico, como Maioria absoluta ou Aruanda, são de fato tantas vezes bastante limitadores pelo tom de tese e de ensinamento intelectual às classes menos favorecidas...

hoje vi Nostalgia. Lembrei de você, que havia feito aquele post no Maracujá sobre o filme. Concordo que seja um filme arrebatador e difícil. confesso que entendi pouco sobre o filme, por isso pretendo ver outra vez, ou outras vezes.

e vou seguir o conselho de ler Os desvalidos!

beijos

Pseudokane3 disse...

De fato, NOSTALGIA tem que ser revisto muito. Terrivelmente (e deliciosamente, reliogiosamente, maravilhosamente) difícil!

Não vi ARUANDA ainda, mas MAIORIA ABSOLUTA funcionou bem comigo. O porquê: ao contrário do que tentou o Vladimir Carvalho aqui, com seus delírios poéticos e foco diluído, o Leon Hirszman (gênio, salve, salve!) foi incisivo e quase profético em sua abordagem-tese sobre o analfabetismo. Vi-o ao lado de minha chefa e, se não fosse em preto-e-branco, diríamos que era um retrato atual do hoje-em-dia. Muitíssimo bom, muitíssimo contundente, muitíssimo doloroso.

O PAÍS DE SÃO SARUÊ, por outro lado, quer ser mais bonito do que necessariamente documental. Nada contra, mas usar uma porrada de sertanejos amistosos para isso é crime! É o tipo de filme que quer que olhemos mais para ele do que para o objeto, mas sem a verve criativa e auto-questionadora do Eduardo Coutinho, pro exemplo.

Obrigado pelo comentário, Tatiana. Fez com que eu focasse um tantinho mais tranqüilo em relação aos meus nojos pré-conceitos e, pior, preconceitos. Amanhã, sem falta, vou ver se acho O QUINZE por aí. Raquel de Queiroz precisa que eu precise dela!

Beijo de agradecimento sincero,

WPC>