sábado, 20 de outubro de 2012

“NÃO EXISTE NADA PIOR DO QUE METÁFORA EXPLICADA”!


Uma canção que ouço com muitíssima freqüência nos últimos dias tem como verso-chave a seguinte admoestação: “ou você cede as rédeas ou morre com suas convicções". Na letra da canção, este verso desempenha uma função bastante específica, mas, isolando-o, agarrei-me a ele com afinco antes de me dispor a pisar num local que jurei não pisar tão cedo, com o intuito de assistir a uma representação teatral que me interessava por motivos bem pessoais: alguém que conheço (e aprendi a gostar com muita facilidade) atuava nela. Valia a pena enfrentar uma autoproibição por isso!

A peça em pauta tinha como título “Itanhy – A Morte Antes da Alma” e a sinopse disposta num caderno promocional a que tive acesso descrevia a mesma da seguinte forma: “a peça, de temática universal, tem ambiência local, ao retratar também a luta entre as forças políticas transpostas do campo para a cidade, que te, no bairro Siqueira Campos, em Aracaju, a concentração da classe e da luta operária”. Eu sei: prejudica muito mais do que incita, mas sentei-me na platéia disposto a aceitar de bom tom o que viesse. Meu coração estava aberto: não queria me predispor enquanto crítico rabugento de província!

Por não ser um conhecedor profundo de teatro, antecipo-me em dizer que não assisti às demais peças do autor Hunald Fontes de Alencar (“Castrum” e “Cárcere de Outono”), com as quais não apenas a sinopse diz que “Itanhy – A Morte Antes da Alma” forma uma espécie de trilogia como também foi graças a ela que uma amiga apressou-se em externar decepção que o que vira imediatamente após o encerramento do espetáculo: segundo ela, os trabalhos prévios do autor são muitíssimo superiores. Eu não os conheço, ater-me-ei ao que vi nesta noite de sábado:

No palco, composto basicamente por paredes pretas e alguns caixotes de madeira com funções objetais diversas, três atores revezavam-se em diversos papéis: Paula Auday, que interpreta uma mãe de família com carregado sotaque nordestino e uma professora de piano vinda do interior; Kassem, que vivifica o filho de um grande industrial/empresário, um pai de família comunista e um torturador encapuzado; e Allan Jones Mariano, também responsável pela trilha sonora, que representa um único personagem, mas em diversas etapas cronológicas. Na trama, o filho de um proletário desenvolve uma amizade tendente à dissolução classista com o filho de seu patrão. Ambos costumam estudar juntos: enquanto um é habilitado em literatura, o outro é perito em matemática. Um quer ser artista, o outro ganhar dinheiro. Ambos concordam que os poemas são bons “para comer as menininhas”, mas, com o passar do tempo, apaixonar-se-ão pela mesma mulher. E pugnarão fatalmente, não apenas por isso, mas por causa de suas divergências políticas irreconciliáveis: um quer pagar o outro para escrever os seus discursos hipócritas. O outro acredita que “toda arte é marginal e, quando deixa de ser, torna-se as fezes que vocês comem!”, grita, referindo-se aos aliados administrativos e coronelistas de seu ex-amigo. O martírio enquanto categoria geral do “mártir que morre a tiro” torna-se uma certeza. E, de fato, a peça termina com a iminência de um disparo anticlimático de revólver...

Entremeada por elipses extremas (levando-se em conta que, segundo a sinopse, cerca de vinte anos se passam em setenta minutos), a peça teve como principal problema, ao menos nesta apresentação, o desempenho dos atores: histriônicos, rebuscados e cerceados pela artificialidade de suas composições personalísticas, deveras inconsistentes, os três membros do elenco dificultaram a imersão do público no teor reclamante da peça. Dos três, Kassem é menos merecedor de vitupérios analíticos, visto que, apesar de sua entrada em cena pouco convincente, entupindo o texto de gírias contemporâneas num diálogo que deveria ser sessentista, está credível como o pai de família combalido, surpreendente (e amedronta) como torturador e sustenta com dificuldade a seriedade do enfrentamento tardio com aquele que, noutros tempos, era um colega de estudos e boemia. Paula Auday esteve péssima como a mãe desamparada que, diante da possível morte de seu filho rebelde, chora enquanto grita que não saberá o que fazer sem ele, com todo aquele luar em seu quintal, mas não atrapalha tanto como a professora de piano com um segredo atrelado ao rico explorador do trabalho do aluno por quem se apaixona e quase nos emociona quando ousa “dançar Chopin na chuva”, ao lado de seu amado. Allan Jones Mariano, o integrante do elenco que eu conhecia e admiro, infelizmente não demonstrou um trabalho muito coerente: apesar de ter enfrentado com audácia os trechos mais poéticos do texto, seu olhar pareceu exacerbadamente embriagado (no mau sentido do termo: o involuntário) durante o restante de sua presença em cena. Comove-nos enquanto se arrasta pelo chão, descamisado, mas não sustenta a confiabilidade actancial quando desempenha as funções de filho, amante e reivindicante pelos direitos dos artistas que também desempenham árduo trabalho braçal. Talvez tenha sido nervosismo de estréia, talvez tenha sido uma falha de direção, talvez tenha sido um exagero perceptivo de minha parte (visto que não tirei os olhos dele, tentando me convencer que não estava a gostar de sua interpretação), mas achei a presença em cena de Allan Jones declinante. Com bons momentos, claro, mas inconvincente no geral. Pena... Mas obras de arte permitem isso, inclusive: a inconstância!

Ao final do espetáculo, conversei com alguns amigos acerca de nossas apreciações e todos eles demonstravam decepcionados no geral, mas satisfeitos com um ou outro aspecto. “Não foi de todo ruim...”: ouso repetir para mim mesmo agora, contente pela oportunidade de ter apreciado uma tentativa de comunicar algo ao público, de incitá-lo à conclamação político-ideológica, de ter me empolgado quando vi o próprio autor adentrar o palco para compartilhar conosco a gênese de sua partitura prosaica e o quanto a canção “Triste Aribé” (muito bem executada na peça por Allan Jones Mariano) foi representativa para si, mas, ao mesmo tempo, não consigo conter o riso desmerecedor quando relembro passagens da peça, como quando o pai vocifera que “pobre também sonha em 3x4” ou quando a mãe retruca que “o único sonho que alimenta é aquele que é vendido na padaria”. Tendo desfeito a minha promessa por uma boa causa, posso voltar à persecução de meus princípios... E eu fui apenas um num palco lotado de espectadores!

Wesley PC> 

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