segunda-feira, 9 de julho de 2012

“A ALEGRIA É UMA QUEIMADURA QUE NÃO SE SABOREIA”...

Nesta noite de domingo, terminei “A Peste” (1947), obra-prima do Albert Camus. Tornou-se rapidamente um dos favoritos de minha vida, um livro que me consumiu ao mesmo tempo em que eu o consumia, que me fez sentir a pujança de seus eventos como se eu fosse um dos moradores da cidade de Orã. Não é um mero relato narrativo, mas uma crença fervorosa de que “há nos homens mais coisas a admirar que coisas a desprezar”, conforme revela o narrador no último capítulo do livro, revelação esta que não me atrevo a refutar: eu concordo, eu escolho acreditar!

Interessante que eu tenha mencionado o narrador de supetão. Afinal de contas, um dos méritos irrefutáveis desta obra é o inteligente uso da instância narrativa, que, apesar de sua percebida onisciência [metalingüística, inclusive, visto que, em dado momento, o assassinato praiano de outra obra-prima do autor (“O Estrangeiro”, de 1942), é mencionado], prefere ater-se aos eventos apenas do ponto de vista compartilhado por alguns personagens. No derradeiro capítulo, o trigésimo, descobre-se que o narrador do livro era, na verdade, o seu próprio protagonista, o doutor Bernard Rieux, profissional abnegado que, durante vários meses, sacrifica sua vida social e seu bem-estar em prol dos vários afligidos pela peste cruel que intitula o romance. Entretanto, para além das diversas passagens excelentes que compõem o livro, prefiro ater-me a duas, aquelas que mais me encantaram por sua genialidade existencialista.

No capítulo sexto, um personagem secundário e aparentemente trivial nos é apresentado: “à primeira vista, com efeito, Joseph Grand nada era além do pequeno funcionário municipal que aparentava ser”. Gradualmente, percebe-se o quão crucial este personagem seria para a manutenção do doutor Rieux em sua crença na humanidade, o que pode muito bem ser antevisto a partir do desfecho do parágrafo posterior àquele em que o funcionário da prefeitura fora apresentado: “decerto não era a ambição que fazia Joseph Grand agir, segundo ele assegurava com um sorriso melancólico, e sim a perspectiva de uma vida material assegurada por meios honestos. Conseqüentemente, sorria-lhe a possibilidade de entregar-se sem remorsos às suas ocupações favoritas. Se aceitara a oferta que lhe faziam, fora por motivos dignos e, como se diz, por fidelidade a um ideal”. Não é difícil antever, portanto, que foi a este personagem que mais me afeiçoei e, dado o devido distanciamento pretensioso, me identifiquei, por conta de meu desempenho burocrático bem-intencionado ao longo de dez anos no Departamento de Administração Acadêmica da Universidade Federal de Sergipe...

Mas o livro vai muito além de minhas afeições: o livro fere e alisa, tacha o amor de egoísta e, ao mesmo tempo, o defende como sentimento inabalável, como força-motriz da existência. E, sendo o domingo em que encerrei a leitura do livro o aniversário de uma das pessoas que mais amo no mundo, a minha mãe, fui absolutamente arrebatado por uma passagem do vigésimo oitavo capítulo: “Ele sabia o que a mãe pensava e que nesse momento ela o amava. Mas sabia também que não é grande coisa amar um ser, ou que, pelo menos, um amor nunca é bastante forte para encontrar a sua própria expressão. Assim, sua mãe e ele se amariam sempre em silêncio. E ela morreria por sua vez – ou ele – sem que, durante toda a vida, tivessem conseguido ir mais longe na confissão de sua ternura”. Putz! E eu tremia ao terminar de ler estas linhas pela primeira vez...

Obviamente, fiz questão de dizer à minha mãe que a amo, da mesma forma que faço aos meus amigos mais queridos e às pessoas por quem nutro paixonites que, por mais patológicas que possam parecer, são corruptelas interditas de um amor sincero. O livro me contemplou em sua genial discrição analítica acerca de sentimentos tão poderosos, os quais são arduamente defendidos na surpreendente conclusão da trama. Quando eu contava a história do mesmo a alguém, aliás, comentaram que o modo como a narrativa se desenvolve (uma doença surge de repente, faz com que as pessoas mostrem como realmente são no interior de suas almas e, depois que a epidemia abranda, tudo volta ao normal, ainda que uma normalidade eternamente alterada pelas assunções de caráter manifestas durante uma situação de dor e medo) assemelha-se deveras a obras de José Saramago. Mas entre o tom pessimista e surreal do escritor português e a fé poético-realista do romancista franco-argelino, as ameaças à felicidade contidas nas narrativas do segundo marcam o tom diferencial. E, assim, tal qual o doutor Rieux, eu também sabia que “viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz”. Obra-prima, pura e simplesmente – e eu te amo!

Wesley PC>

Nenhum comentário: