domingo, 9 de fevereiro de 2014

À GUISA DE UMA ENTREVISTA (OU ALGO MAIS) SOBRE A BOCA DO LIXO:

Na manhã de anteontem, respondi a uma entrevista por e-mail realizada por um colega de curso. Ele estava interessado em saber alguns de meus posicionamentos sobre aquilo que é genericamente identificado como pornochanchada. Tive a intenção de explicar-lhe o quanto esta conotação subgenérica se diferencia dos filmes da Boca do Lixo, região que teve a honra de legar ao mundo o talento de Jean Garrett, de quem vi ontem dois filmes, em ordem regressiva, ao lado de meus amigos do CECINE/UFS, conforme expliquei numa relatoria de grupo de estudos:

Primeiro, mergulhamos no fascinante filme-catástrofe “Noite em Chamas” (1978), cujo título espalhafatoso refere-se menos ao incêndio que ameaça tomar de assalto um edifício que à intensidade dramática dos conflitos que movem os numerosos personagens. Ou seja, enquanto o mecânico do prédio revolta-se contra seu patrão por causa dos maus tratos dedicados aos funcionários, uma atriz de comédias eróticas planeja se suicidar, um repórter esforça-se para conseguir entrevistar um jovem milionário que assassinara uma moça numa orgia, um orgulhoso proprietário de touros reprodutores discute com uma dondoca que termina o casamento por causa de incompatibilidades entre seu marido e um cachorro e um bonachão recém-aprovado no Vestibular humilha o filho do capataz de sua residência enquanto convida um trio de prostitutas para celebrar o seu sucesso. São apenas algumas das estórias que se descortinam neste injustamente filme subestimado pela crítica contemporânea.

 Após o menor Caio Amado tecer os seus comentários elogiosos sobre aspectos técnicos do filme e destacar a interferência da precariedade também técnica do mesmo, fizemos um lanche rápido e vimos “Excitação” (1977), pitoresca e magistral filme de terror em que Kate Hansen interpreta uma mulher atormentada por problemas psicológicos que é convencida pelo marido a morar numa casa de praia recém-comprada, onde ocorreu um suicídio. À medida que os aparelhos eletrônicos do local passam a funcionar sozinhos e mantém a mulher num estado crescente de pavor, situações apavorantes (e, obviamente, excitantes) passam a se intensificar. Ao final da sessão, os cecinéfilos estavam encantados: o filme é brilhante!

 Mas, para que a minha empolgação não fique apenas restrita a este trecho de relatoria facebookiana, seguem as perguntas e respostas espontâneas da entrevista:

 • Qual a importância desse gênero para o cinema brasileiro? 

Antes de responder a esta pergunta, tem que se diferenciar o que se chama efetivamente de pornochanchada (ou seja, o subgênero da comédia erótica) e os filmes da Boca do Lixo, que eram vendidos como pornochanchadas sem sê-los. Apesar de eu particularmente crer que estes filmes sejam importantes esteticamente, justamente por causa de sua consolidação enquanto subgênero rentável, a importância cabal para o cinema brasileiro vem mesmo de suas avassaladoras bilheterias, a ponto de, involuntariamente, terem levado os espectadores mais gerais a associarem o cinema nacional como um todo às pornochanchadas, o que justifica que, até hoje, tenha gente que insista em gritar antecipada e precipitadamente que "cinema brasileiro não presta". Mas esta é uma questão muito complexa e demorada: dá uma dissertação inteira de Mestrado, que é o que eu estou tentando fazer (risos)... 

 • Há quem critique a Pornochanchada por ela ter ditado a visão que as pessoas tem do cinema Brasileiro como chulo, com muitos palavrões, e erotismo.

 Na verdade, as pornochanchadas realmente investiam em situações chulas (o que é muito diferente do erotismo), mas era isso o que o público queria, o que enredava uma situação nociva e viciosa de retroalimentação deletéria que desencadeou numa fórmula duradoura e entulhada de equívocos que serviam para justificar a situação ditatorial em que o Brasil se encontrava sob jugo no período. Mas o que a Globo Filmes faz hoje é bem pior. E, por vivermos num sistema democrático (sic), é como se, agora, fosse permitido, o chulo é 'cool'... 

• Você concorda com isso? Como você avalia o cinema brasileiro atualmente?

Existem cinemas brasileiros ultimamente. Plural mesmo. Existem os segmentos regionais, as produções inovadoras de determinados Estados, e as nojeiras produzidas pela Globo Filmes. Novamente, essa é uma questão que dá uma dissertação inteira, mas sou defensor do chulo enquanto opção expressiva sim. Não enquanto única solução, entretanto, que é o que fazem as comédias hodiernas na linha "De Pernas pro Ar" (2010, de Roberto Santucci), por exemplo, urgh! 

 • Para quem era feito esse tipo de filme? (Classe social)

 Todo filme é feito para todo público, para todas as classes sociais portanto. Esta é uma pergunta que reflete os preconceitos da época, como se apenas pobres vissem um tipo de filme X e ricos um tipo de filme Y. Comparando-se com a situação atual, constatamos infelizes que a Indústria Cultural atingiu o seu mais perverso objetivo: está todo mundo igualado por baixo no que tange a subprodutos cinematográficos, infelizmente. 

 • Podemos dizer que esse gênero era voltado para pessoas menos “cultas”? 

O mesmo sendo dito acerca da resposta anterior. Aquela distinção entre 'mas cult' e 'midcult' que o Teixeira Coelho faz em "O Que é Indústria Cultural?" cai muito bem agora... 

• A pornochanchada surgiu em plena ditadura militar. Esse gênero sofreu com a censura? 

Sofreu bastante, mas, ao mesmo tempo, há quem diga (e prove) que a ditadura militar se servia das pornochanchadas para implantar a despolitização: ou seja, enquanto o público se excitava, esquecia que era oprimido ou algo assim. As denúncias sobre financiamento da Embrafilme desta época (década de 1970, principalmente) têm muito a ver com essa questão, que, também, é muito mais complexa do que parece... Muito mesmo! 

 • Qual (na sua opinião) é o melhor filme desse gênero?

Ah, existem vários. Entendendo-se a pornochanchada como subgênero carioca, que é o que faço, ou melhor acredito, acho que os mais interessantes são aqueles dirigidos pelo Victor di Mello, como "Essa Gostos Brincadeira a Dois" (1974). Mas alguns dos filmes dirigidos pelo Carlo Mossy são esforçados neste sentido. E "Ainda Agarro Esta Vizinha", também de 1974, do Pedro Carlos Rovai, é um primor sintético acerca do gênero. Das pornochanchadas paulistanas (ou seja, eminentemente cômicas), as que mais gosto forma realizadas pelo Ody Fraga, como o genial "A Dama da Zona" (1979), e as reinvenções do Fauzi Mansur, como os inspiradíssimos 'O Inseto do Amor" (1980), "Me Deixa de Quatro" (1981), e "Sexo às Avessas" (1982). Mas a lista é longa, poderia passar o dia inteiro elogiando-as aqui...

• Muitos filmes têm destaque até hoje, não por sua importância para a cultura, precisamente, mas por certas polêmicas, como é o caso de Amor Estranho Amor com Xuxa. Esse tipo de polêmica prejudica a imagem desse gênero do cinema? 

 "Amor, Estranho Amor" (1982) não é pornochanchada, mas um drama erótico, político e existencial de primeira qualidade: o seu diretor, Walter Hugo Khouri, é um dos mais geniais e eruditos do cinema brasileiro. Este é um erro grosseiro, abominável, gravíssimo e preconceituoso que, infelizmente se alastra, gera polêmicas errôneos e impede o público de conhecer este filme maravilhoso do jeito que ele merece...

• Ainda se produz esse tipo de filme? Não? E porque ele chegou ao fim?

 Estes filmes deixaram de ser produzidos em meados da década de 1980, quando a ditadura acabou e os filmes com sexo explícito invadiram o mercado brasileiro. Ou seja, quando a pornografia explícita (inclusive estrangeira) invadiu o país aos borbotões, ninguém quis mais ver comédias ingênuas, por mais que se tentasse repetir algumas tentativas tardias canhestras, como a regravação deletéria que o Neville d'Almeida fez para "Matou a Família e Foi ao Cinema" em 1991. Oficialmente, as comédias imbecis e preconceituosas (e bem-sucedidas na bilheteria, claro) da Globo Filmes de hoje tem muito a ver com as piores pornochanchadas de outrora, mas isto gera outro debate, muito mais polêmico, minucioso e delicado.

 • Porque você escolheu esse para sua defesa de mestrado?

 Escolhi este tema porque percebo uma ignorância proposital e violenta da crítica brasileira a estes filmes, que têm algo a oferecer, sim senhor. Deixando claro que eu não pesquiso as pornochanchadas propriamente ditas, mas interesso-me sobremaneira pelos filmes dramático/existenciais da Boca do Lixo, que são vendidos como pornochanchadas, mas definitivamente não são, conforme já expliquei antes e p exemplo do Walter Hugo Khouri vem mais que a calhar. Mas seguiremos falando nisso por muito tempo, visse? Por favor. Não se esgota aqui! 

É isso: seguiremos pesquisando, sentindo e divulgando o assunto!

Wesley PC> 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Muito boa a entrevista,todo mundo,ou quase,que escreve sobre cinema nacional acha que tudo que foi produzido na Boca do Lixo e,por extensão,nos anos setenta era pornochanchada.Sônia Braga e Lucélia santos,por exemplo,atrizes globais e da Embrafilme,são sempre retratadas como pornochanchadeiras,na época não eram.