Na tarde de ontem, passando por meu antigo setor burocrático
de trabalho, conversei com uma amiga mais velha, que precisa apresentar um
seminário sobre as teses epistemológicas de Boaventura de Sousa Santos. Nunca
tinha lido nada mais profundo sobre o autor, mas discutimos bastante a
afirmação dele de que todo conhecimento científico é, antes de tudo, autoconhecimento,
que é totalitário e, por conta disso, tende a se tornar senso comum. Não sei
bem se estou confundindo as assertivas, mas, enquanto conversava com ela, que
estava nervosa, tive a idéia de abrir as revistas que se encontravam no
recinto, em busca de algo que remetesse à discussão cientifica que nos ocupava.
Dito e feito: achamos muito material interessante para ser apresentado em seu
seminário.
A situação acima confirma o que minha orientadora de
Mestrado e meu melhor amigo costumam afirmar: quando estamos a pesquisar algo
com afinco, tudo o que está ao nosso redor corre o risco de ser impregnado por
nosso tema. É o que acontece com os filmes que vejo recentemente: ao chegar de
uma aula sobre Teorias do Jornalismo na manhã de hoje, senti uma vontade
intensa e instintiva de assistir ao filme “A Próxima Vítima” (1983), de João
Batista de Andrade, sabendo apenas que se tratava de uma obra policial sobre
assassinato de prostitutas. O enredo do mesmo abre brechas hermenêuticas muito
mais complexas, questionando com profundidade as obrigações e limites de uma
futura ocupação pessoal, o Jornalismo, além de enfiar perigosamente o dedo na
ferida de abertura democrática ainda em curso quando o filme foi realizado: em
meio à abordagem ficcional, portanto, baseada em fatos reais ainda não desvendados, acompanhamos as eleições governamentais daquela época,
testemunhando os embates de militantes partidários do PMDB e do PT nas ruas
paulistanas. Não por acaso, é mais ou menos isso que é noticiado com insistência
atualmente por causa dos protestos estudantis que tomam de assalto o país (e
são midiática e ciberneticamente convertidos em algo quiçá diferente daquilo
que são em princípio) e que terão uma filial sergipana na tarde do dia 20 de
junho de 2013. Terei mais oportunidades para me posicionar acerca deste assunto
depois da manifestação local, talvez. Por
ora, o filme me deixou perplexo e culpado.
Otimamente interpretado por Antônio Fagundes, o protagonista
do filme é um telejornalista recém-divorciado, que, ao investigar os
assassinatos de prostitutas no bairro do Brás, apaixona-se por uma meretriz
adolescente (Mayara Magri, excelente e terna), ao passo em que se envolve numa
violenta conspiração policial que imputa os crimes a um marginal perseguido que
não era culpado dos referidos assassinatos (Aldo Bueno, extraordinário). O que
parecia meros elementos de uma trama policial típica se converte, nas mãos politizadas
e inteligentíssimas do diretor, num delicado estudo sobre corrupção e sobre o
financiamento individual (ainda que forçoso) de profissionais e cidadãos
comuns, seja pela divulgação de fatos precipitados e enganosos seja pelo
silencio amedrontado, ainda que compreensível. Numa cena absolutamente
antológica, o bandido perseguido, apelidado simplesmente de Nêgo, mija na cara
do jornalista, irritado com a sua cooperação involuntária com a sua difamação
falsa. Os gritos encolerizados e entupidos de palavrões ultrapassam o entrecho:
são direcionados a nós, que, às vezes, nos deixamos contaminar pela impotência destrutiva.
Aplaudi de pé o filme: absolutamente corajoso ainda hoje, que dirá naqueles
dias tensos de 1982, em que foi filmado...
Pitorescamente, por mais que eu admirasse o trabalho do
cineasta responsável por este ótimo filme desde que, ainda adolescente, vi o
maravilhoso e pungente “O Homem que Virou Suco” (1980) pela primeira vez, as audiências
recentes a “Doramundo” (1978, entusiasticamente elogiado aqui) e “O País dos
Tenentes” (1987) me obrigam a lutar pessoalmente para que este brilhante
diretor seja valorizado e reconhecido por suas incríveis proezas denuncistas.
Um Brasileiro com letra inicial maiúscula este!
Wesley PC>
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