Ao final da sessão de “Estou com AIDS” (1986, de David Cardoso),
precisei tomar banho para me esterilizar simbolicamente do que vira na tela:
mentiras, depoimentos precipitados, erros de julgamentos e dados científicos
são misturados num falso documentário que, por pior que seja, por mais
amedrontador que tenha sido para a época, não consegui achar péssimo. O motivo:
passados vinte e oito anos, a atmosfera de “comédia ‘trash’ involuntária”
predomina em relação aos demais aspectos do filme, bons ou ruins...
Antes dos créditos iniciais, diversas pessoas pronunciam o
título do filme, supostamente portadoras do vírus que causa a doença. Depois, ouvimos a voz do diretor e produtor conversando com um médico ao
telefone, explicitando o seu intento de realizar um filme sobre a doença.
Seguem-se esquetes ficcionais bastante artificiais de pornografia, em que prostitutas
competem pelo número de clientes, dois homens alisam as suas mãos quando
acariciam a bunda de uma quenga num ‘ménage à trois’ e um doente terminal
nordestino relembra a sua chegada em São Paulo, quando era comumente assediado
por homossexuais promíscuos, que lhe ofereciam dinheiro e presentes caros...
Paralelamente a estas
mini-tramas, o diretor entrevista personalidades famosas, que dão os seus
pareceres sobre a AIDS: a colunista hollywoodiana Dulce Damasceno de Brito
define a doença como um “pesadelo funcional”, visto que, graças ao horror que
ela provoca, conscientiza muitas pessoas; Alcione, auto-referida como “musa dos
‘gays’ do Brasil”, afirma que não entende o porquê de esta doença afligir as
mulheres e homossexuais brasileiros, visto que ambos são “limpinhos”, imputando
a culpa do contágio aos ‘gays’ estrangeiros e orientando a platéia a ter medo
dos homossexuais estrangeiros, principalmente os de olhos azuis; o boxeador
Maguila afirma que a doença ataca quem se afasta do esporte e que, por estar
sempre ocupado treinando, ele não sabe quase nada sobre a doença; a modelo Helô
Pinheiro cobra providências da Secretaria de Saúde governamental; o humorista
Pedro de Lara associa a doença a uma peste bíblica e recomenda a leitura
emergencial do Apocalipse de São João; e por aí vai...
Em meio a alguns depoimentos, imagens de símios
escandalizados eram enxertados de forma ruidosa e cômica. A filha do diretor,
Tallyta Cardoso, aparece fingindo que é uma criança infectada, obrigada pelos
colegas a se afastar da sala de aula, o que obriga os seus pais ricos a
instalarem um sistema de microfones para que ela possa acompanhar as aulas de
Matemática à distância e participar das argüições sobre a tabuada de
multiplicação. Alegando estar muito cansada por causa da moléstia, quando a
professora lhe pergunta quanto é “dez vezes dez”, ela responde: “noventa”. Ao
final, a foto da garotinha é acompanhada por uma enorme interrogação vermelha, deixando
entender que aquela personagem, interpretada como se fosse real, falecera...
Impossível não sentir a vontade de cair na gargalhada!
Para além de todas estas patacoadas anteriormente
mencionadas, o filme insiste em manter o tom sério, assistencialista, com
diversos profissionais médicos descrevendo minuciosamente os sintomas da doença
ou exibindo radiografias e fotografias dos tumores a ela associados. Pessoalmente,
creio que o diretor David Cardoso tenha sido deveras bem-intencionado ao
realizar este filme: moralista convicto, ele chega a associar a necessidade de
controle da doença à proteção do pantanal mato-grossense, mas incorre em
generalizações aberrantes, como associar a maconha a um perigoso enfraquecedor
do sistema imunológico humano diante do possível contágio com a doença. Por
mais “nojento” (com e sem aspas) que o filme seja, farei questão de revê-lo em
grupo: ele merece ser discutido! Exemplo: num dado momento - um dos mais "geniais", por falta de palavra melhor - uma psicóloga atende a um homossexual "infectado que não quer se identificar" em presença da câmera do David Cardoso e, quando o paciente reclama que está morrendo, o médico retruca: "as pessoas estão acostumadas a falar da vida. Por isso, entendem viver como algo bom. Mas precisamos falar da morte também. Todos nós vamos morrer, inclusive eu". Obviamente, o homossexual se indigna com esta hipocrisia fingida. Só vendo para crer!
Vale lembrar que o filme foi um fracasso retumbante de
público e crítica. Também pudera, conhecendo a especialização do diretor em
sacanagem, todos adentraram o cinema em busca de sexo (eu inclusive, admito!). Até
que uma ou outra pessoa aparece nua, mas David Cardoso não possui a ironia de
um Fauzi Mansur, de modo que a unidimensionalidade moral canhestra desta obra o
deslegitima como o filme científico que ele pretendia ser e o reconfigura como
um interessantíssimo ‘terrir’ brasileiro, daqueles que não têm paralelo com
quase nada realizado na história do Cinema, salvo aquelas produções oportunistas
e tematicamente desagradáveis realizadas por Gualtiero Jacopetti, Franco
Prosperi e Paolo Cavara. Por isso, eu insisto tanto: a Boca do Lixo paulistana
é pura vanguarda!
Wesley PC>
Um comentário:
Estava passeando por São Paulo na época do lançamento,mas não me atrevi a entrar no cinema,sabia que não teria David Cardoso pelado,rs.
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