sexta-feira, 1 de junho de 2012

DESAFIO SEMANAL DOS 11 FILMES - #09: “GREY GARDENS” (1975, de Ellen Hovde, Muffie Meyer, Albert Maysles & David Maysles)

Até então, dentre todos as obras componentes do referido Desafio, este foi o filme mais difícil de ser visto. Não sei se a dificuldade era psicológica, situacional, identificativa ou se era a subsunção a um efeito proposital do documentário, mas sei que foi difícil chegar até o fim: “Grey Gardens” é um filme árduo, dorido, cru, pungente, muito bom, mas que eu tenho receio de rever por enquanto!

De supetão, minha primeira referência comparativa foi o posterior “Estamira” (2004, de Marcos Prado), documentário sobre uma mulher esquizofrênica que vivia num lixão e que nutria uma verdadeira ojeriza pelo conceito antropomorfizado de Deus. Assisti a este filme no cinema e, ao final da sessão, o próprio diretor participou de um debate que me incomodou deveras por causa do tom bastante demagógico acerca das condições de vida da protagonista de seu filme. Ao invés de comentar sobre suas opções estéticas ou sobre as epifanias filosóficas de caráter chulo proferidas pela personagem real, recentemente falecida, ele preferiu declarar para a platéia que, após ter concluído o seu projeto cinematográfico, ele a ajudou a se mudar para uma nova casa, num bairro muito mais higienizado. Fiquei bastante irritado à época: cinema e filantropia não são necessariamente antônimos funcionais, mas o assistencialismo capenga do diretor era patético, no pior e mais senso-comunal sentido do termo.

Pois bem, neste árido retrato cinematográfico de mãe e filha que vivem reclusas numa grande propriedade abandonada, o que mais me perturbou foi justamente o inverso: o registro é tão perturbador que eu desejei que os quatro diretores do filme sentissem pena das ex-socialites filmadas. Mas eles não sentiram. Eles limitaram-se a filmá-las, sem julgá-las e sem fazer apologias às suas bizarrices comportamentais. Senti-me violentado, de tão compungido que estava ao final da sessão.

Em “Grey Gardens”, a tia e a prima da ex-primeira-dama estadunidense Jacqueline Kennedy-Onassis, ambas chamadas Edith, são desnudadas em seu cotidiano de extrema clausura em relação ao mundo exterior aos jardins sujos de sua residência. No início do filme, recortes de jornais situam-nos elipticamente em relação ao contexto que motivou a curiosidade sobre as personagens: condenadas ao despejo, caso insistissem em não limpar a sua propriedade depauperada e entupida de entulhos e pulgas, as duas mulheres iludem-se e nutrem-se com memórias de um passado glorioso: a mãe era uma grande cantora do rádio, enquanto a filha mostra-se como uma artista solteirona frustrada. Enquanto a mais velha, com 79 anos de idade, passa a maior parte de seu tempo na cama, comendo e observando os hábitos fecais de seus diversos gatos, a mais nova desfila histérica pelos ambientes da residência, sempre com a cabeça coberta, saias curtas, alimentando guaxinins, dizendo que é infeliz, preterindo as supostas investidas românticas daquele que parece ser o jovem mordomo da residência. Muito cruel testemunhar tudo aquilo!

O que motivou a comparação com o filme do Marcos Prado é que, ao contrário do assistencialismo demonstrado no discurso do filme mais recente, os diretores de “Grey Gardens”, que parecem (ou fingem) ser amigos das duas protagonistas, exibem detalhes escandalosos e aberrantes do dia-a-dia de maus-tratos mútuos e frustrações delas duas. As roupas assaz decotadas da filha Edie, os braços nus e pelancudos da idosa Edith, a pletora de lixo depositada nos jardins da casa, a bagunça engendrada pelos animais que vivem no local e os testemunhos nostálgicos dos fracassos amorosos e sociais das mulheres são filmados de forma tão indecorosa que a impressão que eu tive foi que os diretores traíram a confiança que aquelas senhoras sofridas depositaram neles. Nos créditos finais, eles agradecem a alguém por ter permitido o uso comercial daquelas imagens, quando eu senti na pele que, se elas fossem minhas parentas, eu me sentiria bastante envergonhado de compartilhar toda aquela miséria psicológica com o público. O filme é triste, muito triste!

Por mais que a mais velha das duas mulheres pareça confiante quando proclama que “a pessoa se torna independente quando vive sozinha, um verdadeiro indivíduo”, o que se constata no filme é uma dependência atroz e inassumida em relação a pessoas insensíveis, como é demonstrado de forma muito patente na cena da festa de aniversário de Edith, de cortar o coração, de intimidar até quem não conseguiu demonstrar compaixão pelas histriônicas personagens. Numa outra cena, Edie reclama que sua mãe não a "deixa ser feliz nem por cinco minutos". E eu fiquei com medo de me imaginar numa situação parecida: o filme é terrível, violento, desolador! Saí da sessão perturbadíssimo e assustado: quase esqueci que o que me incomodava no início era o pensamento recorrente nalguém que estivera comigo até alguns minutos antes da sessão. Quase. Pois “quase” sempre foi e sempre será uma de minhas palavras favoritas!

Wesley PC>

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