quinta-feira, 28 de junho de 2012

ADAPTAR UM LIVRO NÃO É APENAS TRANSFORMAR PALAVRAS EM IMAGENS: É SABER QUE CADA VEÍCULO MIDIÁTICO POSSUI AS SUAS REGRAS, FUNÇÕES E ARTIFÍCIOS. MARK ROMANEK NÃO DEVE ENTENDER MUITO BEM DISSO...

Enquanto eu assistia casualmente ao filme “Não Me Abandone Jamais” (2010, de Mark Romanek), na manhã de hoje, sentia raiva. Não apenas porque estava achando o filme muito ruim, mas porque ele se dispôs a trair um dos livros mais surpreendentes que li recentemente. Como bem resumiu o amante da literatura Leonardo Ribeiro em sua pertinente resenha sobre o mesmo, o que mais encanta no livro que deu origem ao filme é que, ali, o leitor “vai ser surpreendido o tempo todo. E o melhor: surpreendido pelo trivial”. No filme, acontece o extremo inverso: não apenas tudo é muito previsível como vergonhosamente desgastado numa péssima adaptação enredística a cargo do espalhafatoso Alex Garland, em interpretações apáticas e vergonhosas (principalmente as de Andrew Garfield e Keira Knightley que, convenhamos, são menos culpados por seus maus desempenhos do que a ridícula composição dos personagens fílmicos), no trabalho pusilânime e clicheroso do diretor Mark Romanek e na abominável condução musical de Rachel Portman, que torna o que poderia ser dramático em meramente xaroposo. As exceções elogiosas ao filme estariam apenas na boa atuação de Carey Mulligan, que tenta contribuir com sua delicadeza natural para a diminuição da frigidez de sua personagem, e na bela reflexão final, a cargo desta mesma personagem, que acrescenta detalhes interessantes à trama do livro, com, por exemplo, a angústia da cuidadora Kathy H. em saber que também será uma doadora de órgãos dentro de algumas semanas. Tal detalhe, inclusive, me faz sentir a necessidade de esclarecer o ponto de vista contido no título desta postagem: boas adaptações cinematográficas de livros não se limitam a reproduzir fielmente o conteúdo da obra original, mas, pelo contrário, seguir à risca o que está embutido na palavra adaptar e... Adaptar!

No caso da versão fílmica de “Não Me Abandone Jamais”, as opções adaptativas são vergonhosamente traiçoeiras em relação à sensibilidade do livro: até entendo que os eventos transcorridos durante a infância dos protagonistas tenham sido bastante resumidos (ou eliminados, como na maioria dos casos), mas inverter radicalmente os principais motes dramáticos construídos pela sutil narrativa de Kazuo Ishiguro foi algo imperdoável. Exemplo-mor: extrair a significação/interpretação maternalista da canção que intitula o livro/filme por uma canção piegas e redundantemente mendicante litania oscular. Além disso, o relacionamento de amizade (irregular, mas amizade acima de tudo) que percebemos entre Kathy e Ruth foi substituído por um joguete ridículo de ciúmes, em que a primeira é comumente mostrada chorando pelos cantos enquanto a segunda faz sexo com Tommy que, no livro, é o terceiro vértice de um triângulo afetivo sujeito a diversas identificações. Para piorar, eventos são adiantados, invertidos, amalgamados ou suprimidos de forma superficial, visando os interesses mercadológicos de uma trama centrada em conflitos namoratórios ridículos, em que uma inveja canhestra dos contatos sexuais alheios dilacera o próprio investimento lacrimal que o roteiro tenta obter quando enfoca o tratamento desumano legado aos doadores de órgãos, no filme, muito mais conscientes disso que no livro. Sinceramente, detestei o filme! 

Durante o processo de consumo emocional do livro, eu publiquei pelo menos dois textos em que enumerava as minhas percepções apaixonadas diante do mesmo. No primeiro deles, eu destacava um dos trechos mais geniais do romance, que explicava de forma genial a relação que a protagonista Kathy tinha com a fita cassete que contém a fictícia canção-título. No filme, qualquer menção aos perigos simbólicos do fumo é suprimida. No segundo texto, eu sintetizava o estado de espírito que me tomou de assalto quando virei a última folha e teci comparações com o modo como me relaciono com alguns amigos e sinto falta deles. No filme, isso é reduzido a um namorico substitutivo e quase vilanaz em sua passivo-agressividade. O pior: enquanto eu me encantava pelo livro, alguns de meus melhores amigos suplicavam para que eu visse o filme o quanto antes, no sentido de que o mesmo era urgente. Urgente? Só se for para demonstrar mais uma vez que o mundo está acabando e que os técnicos cinematográficos são vitimados por uma falta de criatividade lancinante. Absurdo este filme, de tão ruim. Absolutamente absurdo: a conversão da ingenuidade obediente dos personagens no extravasamento paspalho mostrado na foto que o diga!

 Wesley PC>

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