quinta-feira, 17 de maio de 2012

AFINAL, AGORA SEI O QUE SIGNIFICAM ‘CHEMINOTS’, ‘JAMBES’ E ‘SALAUD’! (E COMPREENDO QUE “MAIS FELIZ É AQUELE QUE COMBATE SEM ÓDIO”)

Para além dos diversos acontecimentos dignos de nota que aconteceram comigo e/ou ao meu redor nesta quarta-feira, arrisco-me a sintetizá-los no meu contentamento por finalmente ter conseguido terminar a leitura da edição francesa do romance senegalês “Os Pedaços de Madeira de Deus” (1960), de Ousmane Sembène, sobre o qual eu me debruçava há mais de quatro meses. Apesar das várias dificuldades de compreensão idiomática que experimentei, creio que teria os mesmos problemas de compreensão se tivesse lido este belo romance em minha língua natal: afinal de contas, o modo como o genial autor estrutura a sua narrativa é demasiado complexo. Dezenas e mais dezenas de personagens ganham vida ao longo de três cidades (Bamako, Thiès e Dakar), uma situada em Mali e as outras duas no Senegal, sendo que ambos os países conquistaram a independência em relação à França no exato ano em que o romance foi lançado...

Apesar da coincidência, o filme já estava escrito em 1959 e os eventos descritos são uma ficcionalização de uma imponente greve de ferroviários ocorrida entre 10 de outubro de 1947 e 19 de março de 1948, no Senegal. Ousmane Sembène, obviamente, toma pleno partido de seus personagens grevistas, mas sem particularizá-los em demasia: não obstante algumas pessoas serem bastante destacadas em relação a outras, o que interessa ao autor é o papel social que cada uma delas desempenha, o que torna ainda mais hermética a leitura, visto que nomes como os dos militantes Bakayoko, Boubacar, Samba N’Doulougou e Sounkaré misturam-se aos dramas de mulheres fortes como Penda, Fatoumata, Maimouna, Ramatoulaye e N’Deye Touti, além da pequena Ad’jibid’ji. Em outras palavras, foi complicado memorizar tantos personagens, tão igualmente relevantes em sua importância coletiva quanto nomenclaturalmente complexos em sua ascendência muçulmana. Mas é um ótimo livro, insisto!

 Dentre os episódios que mais me impressionaram, em seguida à deflagração da greve de ferroviários e suas conseqüências familiares imediatas, destacam-se: os diálogos entre a curiosa Ad’jibid’ji e sua avó Niakoro Cissé acerca daquilo que "poderia lavar a água" (resposta: o espírito, que é muito mais límpido do que ela); o impressionante episódio das mulheres que marcham a pé de Thiès até a capital Dakar, conduzidas por Penda, “a mulher de vida fácil”, porém bravia e decidida; e os embates entre sindicalistas e patrões, marcados por um triplo choque de interesses classistas, raciais e nacionais. Mas, dentre as 379 páginas da edição que estava em minha mão, uma longa citação merece ser destacada em seu idioma original:

Et maintenant, rentre, Bakary m’a dit l’autre jour que tu n’avais pas de coeur. Parfois, je pense comme lui. Peut-être faut-il des hommes comme toi. Et puis c’est difficile de combattre sans avoir la haine de son enemi. Comme j’ai du temps pous lire, essaye de m’apporter des livres, des romans pas trop sensibles mais pas trop durs, et surtout des livres qui parlent de la vie des hommes des autres pays(p. 348).

Na trama, esse texto é parte de uma carta que o grevista Ibrahima Bakayoko recebe de seu amigo Lahbib, reconhecendo os seus méritos impressionantes na condução de uma difícil luta em um país (à época, ainda colônia dependente da França) lancinado por disputas internas, que vão desde a multiplicidade de dialetos locais até divergências acerca da aceitação da poligamia enquanto prática social. Entretanto, estas palavras podem ser extensivamente aplicadas como panegírico ao próprio modo apaixonado com que Ousmane Sembène escreve esta obra densa e prenhe de beleza militante. Ele não transformou a mesma em filme, mas o seu conteúdo tem muito a ver com o brilhantismo de seu egrégio ‘corpus’ cinematográfico, minuciosamente coerente da primeira à última obra.

 Curiosamente, enquanto eu encerrava a leitura, os professores da universidade em que estudo entraram em greve. Na sala de aula do Mestrado, foi realizada uma votação discente para saber em que sentido, nós, alunos, demonstraremos o nosso apoio às reivindicações (prioritariamente salariais) dos mesmos. Malgrado discordar de muitos aspectos de uma greve que, para ser funcional, deve ser prejudicial, eu assumi-me favorável à decisão dos professores. Votei contra o que a maioria de minha classe queria, mediante convencimento plausível de um rapaz partidariamente politizado que estuda comigo. Mas, na verdade, o que me motivava de verdade, enquanto manifestava meu voto, era a reverberação dos processos dialéticos muitíssimo bem descritos no livro encantatório – apesar de muito difícil – que, finalmente, eu acabava de ler... “Os Pedaços de Madeira de Deus”, enquanto obra de arte superlativa em seus aspectos estéticos, históricos e políticos, mudou o meu modo de encarar a vida!

Wesley PC> 

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