sábado, 24 de dezembro de 2011

“A VERDADE, NADA MAIS QUE A VERDADE”...

Ontem eu recebi uma intimação da Ouvidoria da instituição em que trabalho: alguém havia feito uma denúncia grave contra a forma como eu atendo as pessoas, tachando-me de “loiro pintado que acha que tem o poder nas mãos”. Foi-me sugerido, no tal documento, que eu mesmo responda à acusação, mas minha chefa preferiu que eu só o fizesse após o nosso retorno ao trabalho, dia 02 de janeiro de 2012. E, até lá, ficarei angustiado em ser o mais preciso possível na alegação de meus argumentos defensivos, comprometendo-me com meu dever de falar sempre a verdade, ou algo que se assemelhe bastante a ela.

Quem me conhece pessoalmente ou me acompanha através deste ‘blog’, sabe que gosto bastante de meu trabalho. Não é uma tarefa fácil a que executo, entretanto: “lidar com gente é muito complicado”, sempre me dizem. Ser recepcionista de universidade é algo que me faz estar em contato direto com pessoas mimadas e/ou amparadas pelos vícios estatais oriundos da autoridade alheia ou da riqueza de outrem. Ainda assim, mantenho-me firme no que acredito. Sou legalista e intuitivo ao mesmo tempo: sinto prazer em ajudar quem merece ser ajudado (escopo este que, no plano democrático, abarca qualquer ser vivo). Mas às vezes é uma tarefa falha: eu erro, sou humano. Ontem mesmo, portei-me de forma desagradável ao telefone: uma mulher de voz arrastada com quem conversei no dia anterior acusara-me de tê-la sujeitado à humilhação na SETRANSP, em razão de eu insistir em explicar que o setor em que trabalho não é responsável pela correção do problema que ela reivindica. Por mais combalida que ela estivesse (além dos contratempos burocráticos, ela me contara que uma irmã estava na Unidade de Tratamento Intensivo de um hospital), ela era bruta comigo. Praticava o que os pedagogos chamam de “violência branca”. E, por estar realmente ocupado, estressei-me: “eu vou precisar desligar. Tenho uma fila imensa diante de mim. Qualquer coisa, procure-me pessoalmente que eu verei o que posso fazer por ti. Mas adianto: este problema não será resolvido aqui!”. Ela pediu licença e desligou o telefone. E eu fiquei com dor na consciência depois disso. Quando li a denúncia – estapafúrdia, afinal de contas – advinda de outra pessoa, insistente, intimidadora e chantagista, fiquei muito triste. Será que é isto mesmo o que eu quero fazer da minha vida: ser injustamente acusado quando os meus erros verdadeiros são ocultos e os demais acertos desgarram-se nos agradecimentos íntimos? Fiquei pensando nisso até agora.

Acordei na manhã de Natal preocupado em sentir-me deprimido, como sói acontecer. Não foi o caso: recebi mensagens gentilíssimas de pessoas que me fazem muito bem. Liguei a TV, meio que por acaso, e assisti a uma comédia espirituosa outrora recomendada por uma colega de trabalho. Tratava-se de um filme chamado “O Primeiro Mentiroso” (2009, de Ricky Gervais & Matthew Robinson), sobre um escritor gordinho e de nariz arrebitado que se sente um fracassado. Vive no século XXIV, numa sociedade asséptica em que todos, sem exceção, falam a verdade o tempo inteiro. Depois que é rejeitado pela mulher com quem tem um encontro romântico frustrado, ele é despedido do emprego e despejado de seu apartamento. Quando vai retirar o parco dinheiro que guardou num caixa de banco, depara-se com uma funcionária sorridente que lhe comunica que está sem acesso ao sistema geral do banco e, como tal, não tem como saber a quantia exata que ele tem depositado. Ele mente: praticamente triplica o valor e, mesmo após o retorno do sistema, ela não questiona a afirmação dele. Ninguém havia falado algo que não fosse verdade até então. “O sistema deve estar errado, senhor”, diz ela, entregando-lhe a quantia que ele solicita. Daí por diante, ele deduzirá que falar mentiras pode lhe render favorecimentos, inclusive no que tange ao auxílio provisório às pessoas que lhe cercam. E, graças a um rompante de espontaneidade emocional, diante da mãe moribunda, ele inventa a religião: ela está sofrendo um ataque cardíaco e ele lhe diz para não ter medo de morrer, pois ela “irá para um lugar melhor, onde todos os seus amigos estão e todos vivem em mansões”. Daí por diante, todas as pessoas querem saber mais sobre o que existe após a morte.

Até este ponto do filme, eu pensei que estivesse desgostando sobremaneira dele, por causa de suas apologias às “mentiras piedosas” (que eu não tolero como boas, diga-se de passagem) e pela típica associação indébita entre inteligência espirituosa e ateísmo crítico. Mas, aos poucos, fui percebendo que o esperto roteiro do filme não desmerecia a religião em si, mas sim a subsunção embasbacada das pessoas ao que falsos profetas apregoam nas ruas. E, sem querer atrapalhar as surpresas da estória para quem quiser ver o filme, adianto que o final é feliz. Não tinha como não ser, no contexto em pauta. Em dado momento, alguém grita: “foda-se o Grande Homem do Céu!”. E, num momento seguinte, o protagonista deixa a barba crescer e assemelha-se à efígie tradicionalmente associada a Jesus Cristo. E eu sorri nesse instante. Estou sorrindo agora, aliás. Deus é infinitamente bom comigo!

Wesley PC>

4 comentários:

João Paulo disse...

É por isso que abri mão desse modelo de vida que nos é imposto pelas circunstâncias sócio-econômicas atuais. Depois de vegetar durante três longos anos, de ter estado assustadoramente angustiado e sem vontade de vida, decidi-me a optar, de agora em diante, somente pelo prazer, pelas realizações pessoais que me enriquecem mais o espírito que os bolsos. Não descarto, no entanto, que o funcionarismo público possa nos trazer importantes experiências, mas, creio, matar um leão por dia não faz o meu feitio, posto nunca ter conseguido ser bem sucedido nos lugares onde trabalhei. O que você pontuou como um estorvo recorrente à satisfação que tem em trabalhar onde trabalha sempre me afetou: lidar com pessoas não é mesmo fácil, e em dadas ocasiões, onde a mentira parece ser a única via capaz de lhe salvaguardar de um desdouro eminente, essa relação, em mim, sempre causou efeitos devastadores, conduzindo-me à taciturnidade, à circunspecção, ao pessimismo, ao reacionarismo. Desse modo, que o destino reserve às minhas ações uma sorte proporcional às convicções que se clarearam acerca do que não quero: portanto, que a certeza de não querer ser um funcionário público se reflita num bom poeta, que o meu asco à vida burguesa se reflita num humano melhor.

Gomorra disse...

Tenho uma família para cuidar: não me posso dar ao luxo de viver pelo mesmo prazer que tu, mas entendo e bato palamas para ti, João Paulo (sem ironias). Se serve de consolo, o teu desdém em relação ao trabalho opressor possui um eco no meu desprezo pela meritocracia acadêmica. Por isso, que eu estou pouco me lixando para a merda do meu currículo Lattes. Mas talvez ambos estejamos errados. Ou certos. Ou apenas estejamos, o que já é muito! (WPC>)

João Paulo disse...

O que eu acho é o seguinte: a gente tem de suportar a vida de alguma forma, achar algo que nos desperte um amor incondicional e que atenue os efeitos desagradáveis que o mundo prático nos proporciona.

Enfim, não encare o meu primeiro post como uma crítica ao seu modo de vida. Foi mais um desabafo pessoal, mesmo.

Pseudokane3 disse...

Concordo plenamente contigo, querido! Inclusive com o que desabafaste no primeiro comentário. (WPC>)