quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

TODO HOMEM HÁ DE PRESTAR CONTAS!

Não sei se eu entendi bem o que acontece ao final da trama principal de “Meridiano de Sangue” (1985), obra-prima literária do estadunidense Cormac McCarthy, mas, seja como for, este apotegma é bem-vindo: todo homem há de prestar contas, mais cedo ou mais tarde!

Conforme destaquei aqui e aqui, gostei deveras dos livros até então lidos deste autor [ “Onde os Velhos Não Têm Vez” (2005), “A Estrada” (2006)], mas ainda estava à espera da obra definitiva, aquela que me faria assumir aos quatro ventos o quão fã deste artista da palavra eu sou. Esta obra absolutamente elíptica e sangrenta de faroeste conseguiu este feito: mal havia iniciado a leitura do romance e já tinha certeza de que eu estava diante de uma obra simplesmente canônica, de um daqueles livros que, definitivamente, qualquer ser humano minimamente preocupado com o mundo ao seu redor deve ler antes de morrer!

Não sei se digo que é um livro fácil ou difícil. Por mais acessível que ele pareça, estratagemas radicais de condução narrativa – daqueles que, no cinema, corresponderiam aos artifícios de um Jean-Luc Godard ou de um Jean-Marie Straub – manifestam-se do primeiro ao último capítulo, culminando num epílogo extremamente poético e cifrado, mas, ao mesmo tempo, tão genial que, como bem alertou o homem que me emprestou o livro, será essencial reler esta preciosidade algum dia...

A edição do livro a que tive acesso contém 351 páginas. Que eu me lembre, somente na página 175 (final do 12º capítulo), há um indicativo preciso do tempo da narrativa (“no dia vinte e um de julho do ano de mil oitocentos e quarenta e nove entraram na cidade de Chihuahua para serem saudados como heróis”). Na página 331 (início do 23º capítulo), há uma nova indicação temporal decisiva (“no final do inverno de mil oitocentos e setenta e oito ele estava nas planícies do norte do Texas”). Entre uma e outra indicação, não apenas 29 anos transcorrem: o estilo propositalmente picotado da narrativa – introduzido em cada capítulo por manchetes que carecem ser relidas após o consumo dos capítulos, de tão essenciais que são para o entendimento preciso do que acontece na história – e a composição riquíssima dos personagens – sendo o estouvado kid inominado e o imponente juiz Holden os principais deles – deixam patente a grandiosidade de Cormac McCarthy enquanto gênio literário, o que é também demonstrado pela concomitante riqueza de detalhes na descrição das agruras e atrocidades sofridas e/ou cometidas pelos personagens. Sob qualquer ângulo que se pretenda analisar este livro, o julgamento recairá numa unanimidade conclusiva: obra-prima!

Não cabe aqui uma síntese tramática: tantas são as rupturas, recomeços, surpresas e interrupções narrativas que, conforme antecipado, o estilo da escrita e a composição dos personagens é que dão o tom da sedução literária aqui anunciada. Digo mais: a magnificência geológica de algumas passagens é tão impressionante, que é mister destacar uma das passagens mais intrigantes neste sentido. Afinal de contas, na página 51, na explicação da continuidade do percurso errante dos protagonistas, lê-se que eles “seguiram sua marcha e o sol a leste lançou pálidas estrias de luz e depois uma faixa mais profunda de cor como sangue filtrando para o alto em súbitas distensões planas e fulgurantes e onde a terra era absorvida pelo céu no limiar da criação a ponta do sol surgiu do nada como a cabeça de um enorme falo vermelho até que clareasse a orla invisível e se aboletasse gordo e pulsante e malévolo às costas deles”. Assim mesmo, com este estilo cumulativo de pontuação suprimida. Homens morriam e eram mortos. Pessoas rudes desfilavam seus impropérios o tempo inteiro, enquanto a instância narrativa conduz tudo com mão firme e linguajar técnico e erudito. A escrita faz com que experimentemos todo o calor e fulgor vivido e/ou causado pelos personagens. As emoções precisam estar em segundo plano, por detrás do medo e do ódio. E eu não parava de repetir comigo mesmo enquanto lia: obra-prima!

Estou tentando encontrar o elogio definitivo para aplicar a este romance, mas todos me fogem. Fogem porque ficam pálidos frente à crueza nobiliárquica do livro. Agora eu assumo a minha devoção em relação ao Cormac McCarthy. Não tenho coragem nem inclinação nem vocação nem anseio de fazer o contrário: gênio, pura e simplesmente!

Wesley PC>

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