quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

“SEI LÁ... BICHA É MAIS SENSÍVEL, NÉ?”

PREÂMBULO: Dois amigos meus, ambos homossexuais e externamente afetados, estavam bebendo algo num bar do Centro da cidade de Aracaju, quando três cafajestes se aproximam:

“- Oi?
- Oi.
- Tudo bem?
- Sim...
- Eu e meus amigos preferíamos comer uma boceta, mas, como só tem vocês mesmo, a gente aceita. Que tal irmos para aquele motelzinho ali no canto para... (ele faz um gesto com as mãos, que quer dizer ‘foder’)
- Errr... Não, obrigado.
- Ah, vamos. Meus dois amigos têm o picão!
- Err... Não.
- Vamos, vá...

- NÃO!”


O diálogo acima foi ditado por um dos dois amigos envolvidos no convite indecoroso, na tarde de ontem, numa praia. Ele acrescentou que, ao final, diante de tanta insistência dos três cafajestes, ficou com medo de ser espancado ou perseguido. Por sorte, nada aconteceu e eles foram firmes em sua recusa sexual de baixo calão. Ligando a TV na manhã de hoje, me deparo com um filme brasileiro chamado “Os Machões” (1972, de Reginaldo Faria), que partem de um pressuposto inversamente imitativo: no afã por comerem uma boceta, três amigos mulherengos vão até a casa de um travesti, sem saber que ele, de fato, não é mulher. Quando estão beijando-o à força, um dos amigos vê o sutiã com enchimento cair e espanca o travesti até que ele desfalece. Quando o mesmo acorda, a idéia: “que tal vocês três se vestirem como viados?”. Eles aceitam e resolvem procurar emprego no mesmo salão de beleza e que o homossexual agredido (Márcio Hathay) trabalha...

A partir da obtenção dos empregos, o filme passa a contar três estórias paralelas: a primeira, protagonizada por Erasmo Carlos, o agressor do travesti, é a de um bigodudo que se finge de massagista ‘gay’ para fazer sexo com suas clientes, que, solitárias, sempre recomendam os seus serviços às amigas; a segunda estória é a do loiro boa-pinta vivido por Reginaldo Faria, que se torna, mesmo sem querer, um cabeleireiro talentoso e ganha a confiança de uma viúva macambúzia, que o contrata como embelezador particular, até que ele se apaixona por sua filha loira e juvenilmente lasciva; e a terceira estória é a do franzino personagem de Flávio Migliaccio, que se apaixona platonicamente por uma milionária obcecada por ficar nua, mas que duvida de sua sexualidade até mesmo quando ele se revela heterossexual. Ele insiste tanto, que ela anui em fazer sexo com ele, mas ele broxa. Passa a questionar a sua própria sexualidade, chegando mesmo a se vestir de mulher por uma noite, mas o desfecho do filme lhe concederá um benfazejo congelamento de imagem, ao som da canção “Mundo Cão”, composta por Erasmo Carlos e seu companheiro de Jovem Guarda Roberto Carlos. É um bom filme, apesar de tudo.

Apesar de a primeira estória ser previamente autorizada pelas fórmulas cômicas similares de tantos outros filmes e a terceira ser pitoresca e até um tanto dramática na identificação de objetivos perseguidos que alcança com a platéia, a segunda me pareceu delicada e muito complicada: primeiro, porque Reginaldo Faria é hostilizado por parecer homossexual, mas o filme não lhe dá voz de defesa geral (posicionando ostensivamente contra a homofobia gratuita, por exemplo), mas apenas porque ele não é ‘gay’; segundo, porque eventualmente a câmera focaliza os olhares tristes de pessoas coadjuvantes à sua imitação de efeminado, como a viúva interessada nele e o travesti agredido que o ama confessadamente. Aí eu percebi o quão inteligente é a direção do Reginaldo Faria, irmão do mestre Roberto Farias, por detrás de um roteiro machista e tão enganoso em seu talento legítimo: o filme adota uma forma deslocada de “narrativa indireta livre”, em que é facilmente distinguível a quem pertence o ponto de vista a partir do qual as estórias (em especial, a segunda) são narradas. Ou seja, o filme obviamente torce pelos personagens mulherengos, mas não toma partido completo deles. Isso só torna a recepção do filme ambígua: se hoje eu estranhei as opções controversas e “indefinidas” do diretor e roteirista, imagina então na época em que o filme foi lançado, quando a afetação homoerótica não estava tão em moda como hoje em dia... Juro: fiquei surpreso com o que vi. Pensei que fosse nutrir ódio pelo filme, pelos personagens, pela covardia do diretor, mas até que simpatizei deveras pela sinceridade argumentativa fugidia do mesmo. Recomendo-o, devidamente acompanhado de debate.

Wesley PC>

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