domingo, 9 de outubro de 2011

NO ESPAÇO, NINGUÉM VAI OUVIR A TUA NECESSIDADE DE SURFAR...

Sábado à noite. Enquanto eu me recuperava do cancelamento justificado de um programa entre amigos e aguarda a confirmação de um evento substitutivo, recebia mensagens compulsivas de uma jovem carente que, segundo ela, havia sido covardemente abandonada pela namorada, que a trocara por outro homem. Eu evitava retroalimentar a sua depressão informativa, mas ela não parava de me enviar mensagens. Por voltas das 22h, mais de 20 mensagens de súplica e carência entupiam a caixa de entrada do meu telefone celular. E eu sentia a necessidade urgente de um “combustível fílmico” antes de sair com meus amigos. Que filme ver? Qual poderia me ajudar neste turbulento contexto de atenção redistribuída?

Vasculhando os meus pertences, descobri que estava de posse de “Dark Star” (1974), longa-metragem de estréia do cineasta independente John Carpenter. Antes de ver o filme, já aguardado de forma ansiosa, visto que sou fã do diretor, li uma resenha enumerativa num Guia de Vídeo antigo e percebi que o referido filme recebeu uma cotação ínfima de uma estrela, que, num sistema de notas, equivale ao intervalo entre As notas 0,1 e 2,0. Era um filme considerado “péssimo” por aqueles críticos, portanto. Como as resenhas enumerativas costumam ser taxativamente violentos contra os filmes independentes, alternativos e revolucionários de esquerda, desdenhei da avaliação negativa e adentrei a sessão com muita empolgação, cedendo ao cuidado prévio de enviar uma mensagem carinhosa a outro fã do diretor.

O filme, entretanto, demorou um tanto para engrenar. O tom cômico propositalmente claustrofóbico do filme era deveras particular, concentrando-se no cotidiano de uma tripulação espacial, encarregada de bombardear o que foi definido como “planetas instáveis”, a fim de permitir o surgimento de novos espaços para colonização planetária. O pressuposto ácido era, de pronto, muito engraçado, mas a condução rítmica do filme tornava as piadas um tanto cifradas para quem conhece pouco sobre o dia-a-dia de astronautas estadunidenses (risos). Aos poucos, porém, a mordacidade sarcástica do filme e a sua verve crítico-política logo desembocaram em cenas geniais como: o embate físico entre um dos tripulantes da nave que intitula o filme e um alienígena circular que nada mais era que uma bola de borracha cheia de ar; a execução de ópera enquanto um personagem lutava por sua vida após sofrer um acidente de escotilha; e, principalmente, os dilemas filosóficos relacionados a uma bomba programada para autodestruição. Num primeiro momento, o computador de bordo e os circuitos comunicacionais da bomba discutem a supremacia autoritária de quem os programou para a consecução de suas respectivas tarefas, o que nos leva a um segundo momento absolutamente genial, em que um astronauta tenta desarmar a bomba a partir da instauração de uma crise filosófica acerca de sua própria (in)existência essencial. Pergunta o astronauta: “tu crês que existe de fato ou tu admites que tua percepção do mundo não para de uma simples recepção às manifestações de seu aparato sensório?”, ao que a bomba contesta com uma longa exposição de princípios que se inicia a partir do pressuposto básico (e provisoriamente inquestionável): penso, logo existo!”. Juro: nestas seqüências, o filme me fez gargalhar!

Numa das sessões-chave do filme, um dos astronautas lamenta que, muito tempo vagando pelo espaço, ele não mais dispõe de oportunidades para realizar o seu passatempo favorito: surfar. A cena derradeira do filme sacia este anseio de um modo muito divertido, consolidando a qualidade paródica deste filme inteligentíssimo, possível somente por causa da determinação e criatividade do diretor John Carpenter e de seu próximo colaborador Dan O’Bannon , que, juntos, acumulam as atividades de músico, roteirista, montador, e até mesmo, ator (no segundo caso), entre tantas outras. Ou seja: além de ser um filme muito divertido e de uma coerente sátira do ‘american way of life’ e das convenções de gênero da ficção científica, “Dark Star” é uma verdadeira aula de autonomia artístico-hollywoodiana. Recomendo com o coração aberto e o sorriso estampado no peito. Quanto ao restante da noite entre amigos e do diálogo com a lésbica carente e abandonada, que venham outros textos, outros textos...

Wesley PC>

Nenhum comentário: