quarta-feira, 12 de outubro de 2011

“DEDICO ESTE FILME A TODOS OS COMEDIANTES QUE NOS AJUDARAM A TORNAR MAIS LEVE O FARDO DA EXISTÊNCIA”...

É mais ou menos isto o que se lê no preâmbulo de “Contrastes Humanos” (1941), insuspeita e injustamente menos conhecida obra-prima hollywoodiana que me apresentou ao talento do diretor, produtor e roteirista Preston Sturges, que, aqui, realiza um filme personalíssimo, sobre um diretor de cinema que anseia por dirigir uma grande epopéia trágica sobre a depressão estadunidense. Seus associados, entretanto, insistem para que ele realize um filme popularesco, cômico ou musical. Ele rejeita, com o argumento de que as platéias de trabalhadores precisam de realidade, tem o afã de saber o que está acontecendo no mundo ao redor deles. A fim de tornar seu argumento ainda mais sólido, ele resolve se disfarçar de mendigo e sentir na pele os principais problemas que afligem a população. Em sua primeira saída, ele conhece uma rapariga não nomeada, interpretada pela deslumbrante Veronica Lake, que resolve acompanhá-lo na jornada. E não somente ele se apaixona compulsivamente por ela...

Numa das diversas seqüências geniais deste filme, o diretor e a rapariga tentam pegar carona num vagão de trem, como clandestinos. Esforçam-se sobremaneira para subir, de maneira que dois caronistas também ilegais observam-nos e comentam, em tom de escárnio: “amadores!”. Quando eles finalmente conseguem subir, o cineasta pergunta aos caronistas o que eles têm a dizer sobre a atual situação de miséria vivenciada pelos trabalhadores. Os caronistas dão de ombros e saem do vagão, sem dizerem nada sobre o assunto. Ainda assim, o recado estava dado!

Citando Frank Capra e Ernst Lubitsch como exemplos valorativos de comédia moralmente positiva (mas emulando John Ford como o exato correlato dramático deste mesmo espírito), este filme prenhe de metalinguagem e genialidade compositiva defende, através de uma cena encantadora numa igreja de uma comunidade negra, a necessidade de alegrar as platéias populares: observando seus colegas de sessão, a maioria deles presidiários, gargalharem diante de um desenho animado de Pluto, o cachorro de estimação do rato Mickey, da Disney, o cineasta que protagoniza o filme é atingido por uma epifania e constata que sempre fora muito petulante em seus intentos dramáticos mui ambiciosos: dali por diante, ele está apto a se separar da mulher que não o amava e dedicar-se ao embevecimento risório da população que assiste a seus filmes. Pode não ser uma mensagem totalmente inovadora, mas, dita do jeito como foi dita, há 70 anos, surpreendeu-me bastante pela efetividade.

E, contendo-me para não descrever em excesso os detalhes deste filme absolutamente primoroso e, até a manhã de hoje, ainda não visto por mim, confesso-me aqui extraordinariamente perplexo diante de uma cena brilhante, em que o diretor-roteirista serve-se de estratagemas sintagmáticos e paradigmáticos na mesma seqüência, em que um mendigo é atropelado por um trem, depois que rouba o dinheiro e os documentos do protagonista. No plano sintagmático, este atropelamento tem a função de justificar as maneiras (prisão, amnésia provisória, qüiproquós legais) através das quais o protagonista será atingido por sua epifania cômica. Numa das diversas abordagens paradigmáticas da mesma seqüência, entretanto, o atropelamento tem a função moral de punir um dos poucos personagens pobres de todo o filme que agem de forma mesquinha em relação a um companheiro em situação difícil. Com exceção deste mendigo, a maioria dos personagens retratados dispõe-se a ajudar sem reservas o disfarçado ricaço protagonista, seja oferecendo comida gratuita para ele, seja pajeando-o quando ele é confinado numa desconfortabilíssima prisão solitária pantanosa. Estou impressionado ainda. Obra-prima. E Veronica Lake é absolutamente linda, linda!

Wesley PC>

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