sábado, 26 de março de 2011

“A GREVE É A FESTA DOS POBRES”...

Em meados de 2011, o filme “Capitães da Areia” chegará aos cinemas. Dirigido por Cecília Amado & Guy Gonçalves, sendo a primeira neta do escritor Jorge Amado (1912-2001), o filme transporá as ações do romance em que se baseia para a década de 1950. Além disso, como pode ser facilmente constatado através da audiência a qualquer um dos materiais publicitários já disponíveis sobre o filme, pode-se intuir que os detalhes românticos e aventurescos do livro sobrepor-se-ão aos elementos poéticos e dramáticos tão minuciosamente descritos pelo autor desta verdadeira obra-prima da literatura brasileira.

Publicado em 1937 e compreensivamente perseguido pela Censura estatal do País, “Capitães da Areia” é ainda demasiadamente subestimado em relação a sua qualidade superlativa. Não é um livro longo (pouco mais de 215 páginas, na edição de que dispunha), mas que demorei mais de uma semana para ler. Graças ao uso preciso da comunhão dramática por parte do autor, sentia-me como um cúmplice dos personagens, como um companheiro, palavra tão bela que os encantava sempre que pronunciada... É um livro forte, intenso, realista, tão realista a ponto de ser aberto e entrecortado por recortes de notícias de jornais, que descreviam o espanto da população baiana diante dos crimes perpetrados pelos meninos do título, quando o espanto verdadeiro diz respeito às condições de vida e ódio perpétuo em que eles se encontravam... Abandonados, dormiam juntos num trapiche abandonado. Como muitos o odiavam, eles odiavam a muitos, mas não a si mesmos. Os Capitães da Areia protegiam e amavam a si mesmos.

Apesar de dedicar muitas das páginas do livro à exaltação coletiva das virtudes do bando de garotos, o autor faz com que mais ou menos sete personagens brilhem com ainda mais vigor: o chefe Pedro bala, loiro e filho de um militante grevista assassino em pelo ápice revolucionário, que, aos poucos, se vê atraído pelas manifestações grevistas; o menino Pirulito, que é chamado por Deus a ser padre; o negro João Grande, que tem vocação para marinheiro; o supra-alfabetizado Professor, que chama a atenção de um descobridor de talentos artísticos; a órfã Dora, que se torna “uma estrela de loira cabeleira”, em razão de sua extrema coragem enquanto irmã, noiva e mãe dos Capitães da Areia; o afilhado de lampião Volta Seca, que termina seus dias como cangaceiro sanguinário; o coxo Sem-Pernas, que chega a ser adotado por uma rica mulher triste e conforta-se nas pernas bonitas de uma vitalina de rosto gasto; o mulato Boa-Vida, que dá vazão a seu apelido pelas noites baianas; o elegante Gato, que não se deita apenas com as negrinhas do areal, mas ama o próprio ato do amor; e muitos outros...

O que me surpreendeu particularmente é que o autor não retrata os garotos fazendo uso de drogas, conforme sói acontecer com os delinqüentes infantis de hoje: todos eles eram meninos que se tornavam homens muito cedo, descobriam o sexo por volta dos 13 anos de idade (chegavam a existir atividades pederásticas entre eles, desde que não acentuassem a passividade do coito), precisavam roubar para comer, brigavam para sobreviver, sentiam ódio do mundo porque isto fora o que o próprio mundo lhes ensinara. E, aos poucos, eles, que já eram como se fossem crescidos, crescem efetivamente e não são abandonados pelo autor em nenhum momento. Jorge Amado os ama como filhos e, neste sentido, a foto acostada a esta postagem me emocionou, quando o autor supervisionava a escolha do elenco juvenil numa adaptação teatral de sua obra mestra...

Por dentro, intimamente, ao mesmo tempo em que estou um tantinho ansioso em ver o filme, em descobrir que rostos emprestarão vida de celulóide àquelas crianças tão violentas quanto encantadoras, presumo que os vieses enredísticos desta versão cinematográfica trairão deveras os intentos do autor quando escreveu esta peça brilhante de literatura. Para minha sorte, comemoro o fato de ter lido o livro antes de ter visto o filme, a fim de conservar incólume em minha memória o frescor daqueles personagens impávidos, que apanham em delegacias, que são tachados de criminosos natos (um bedel de reformatório chega ao cúmulo de alegar que eles são excelentes demonstrações da certeza das alegações de Cesare Lombroso!), que são rechaçados por empregadas e donas-de-casa, que são amparados por um padre suspeito de ser comunista, que só querem a alegria e o conforto de uma Pátria e uma Família como cada um de nós... Obra-prima!

Ah, sim, sobre o estilo literário do autor – pelo qual já me apaixonara perdidamente em “A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água” (1961), a despeito de meus injustificados preconceitos de adolescência contra o autor – o que atraiu particular atenção foi o modo como ele repetia determinados termos e expressões repetidas vezes numa mesma frase, num mesmo parágrafo, numa mesma página, para destacar o que os personagens sentiam, para nos contaminar com o que eles sentiam. Lendo aquelas páginas, portanto, os atabaques soavam como clarins de guerra também no interior do meu coração...

Wesley PC>

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