sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

“MEU FETICHE É REAL. O DE VOCÊS É UM FETICHE TÉCNICO!”

Depois de perder todo o dinheiro e toda a autoridade espúria atrelada à burguesia ascendente de um país independente mas não libertado do jugo colonialista, é de bom tom aceitar ser cuspido por todos os aleijados da vila a fim de não ser perpetuamente maculado por uma impotência sexual de caráter malévolo? Apesar de chamar a atenção por seu absurdo, esta cena, esta imagem, este desfecho, esta dilema é um mote diluído na genialidade reinante de “Xala” (1974), obra-prima do senegalês Ousmane Sembene a que tive o orgulho de ver na noite de ontem. Repito, sem pestanejar: OBRA-PRIMA!

Por si só, o roteiro inusitado permite que antevejamos o quão sublime e politizada é esta peça superior do cinema africano, no qual um quinquagenário briga com sua filha mais velha, que se proíbe de falar em francês por razões de protesto nacionalista, quando lhe diz que vai se casar pela terceira vez, com uma rapariga bastante jovem. A filha reclama, em dialeto ‘wolof’, que ele já tem suficientes dívidas e problemas com suas duas esposas e que ele não precisa de uma terceira, ao que seu pai a estapeia, esbravejando hipocritamente que “a poligamia é um patrimônio cultural e religioso dos senegaleses nativos e, como tal, deve continuar ser posta em prática”, visto que estes patrimônios foram as armas de que os tais senegaleses dispuseram para enfrentar os colonos franceses. Numa cena posterior, quando está sendo julgado pelos seus colegas bancários, o burguês polígamo é repreendido pelo Presidente da Câmara quando tenta se expressar em ‘wolof’: “até mesmos as ofensas devem ser proferidas na mais legítima tradição francófona”. E a cada segundo de filme eu ficava mais embasbacado!

Definitivamente, não há uma via dominante para se proclamar a genialidade deste filme: “Xala” é genial enquanto cinema, enquanto arte mais geral, enquanto manifesto político, enquanto clamor protecionista de cunho nacional, enquanto comédia de costumes, enquanto drama social, enquanto brilhante testemunho da inteligência de um homem, visto que o romance no qual o filme se baseou foi escrito pelo próprio Ousmane Sembene. Há uma cena em particular que me deixou em estado de choque: quando se preparava para chegar à cerimônia de seu terceiro casamento, depois de confrontar suas duas esposas enciumadas, o protagonista tira moedas contra alguns pedintes que mendigavam em frente ao rico local do evento. Quando uma criança tenta alcançar uma moeda, esta é pisoteada pelo coturno de um soldado militar, pertencente à comitiva do noivo, que, também esfomeado, se abaixa para guardar a moeda em sua algibeira. Uma cena de poucos segundos num filme com 123 minutos de duração, mas... Como grita!

À medida que o enredo avança, somos levados a compreender que a disfunção erétil do protagonista diante do belo corpo nu de sua terceira esposa virginal é uma metáfora do entreguismo doentio que solapava a nação natalícia do cineasta, de maneira que quedo-me ainda espantado ao imaginar como as autoridades locais permitiram que este filme violentamente contestador fosse lançado. Simplesmente genial!

Wesley PC>

2 comentários:

tatiana hora disse...

essa frase do título é proferida no filme? por quem?

Gomorra disse...

Esqueci de explicar o título: depois que seus ex-amigos rejeitam os apelos monetários do protagonista, eles começam a cacçoar de sua impotência, a tal "Xala" do título e, vasculhando a valise dele, descobrem um penduricalho que ele punha na boca e rastejava, seguindo os conselhos de um curandeiro, no afã por deplorar a sua terceira esposa juvenil. Revoltado, eis o que ele vocifera: "o meu fetiche é real. O de vocês é um fetiche técnico", ou seja, o dinheiro.

Mas, ao final, era tudo hipocrisia e covardia...

E confesso que, mesmo tendo falado tanto sobre o filme e publicado o seu fotograma final, não estraguei nada. Sabe uma obra-prima indefectível do começão ao fim? É este filme! Que tal marcarmos para vê-lo juntos antes de tua viagem, lá na casa de Jadão mesmo, Tatiana?

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