sábado, 13 de novembro de 2010

QUANDO O LEITE MATERNO NÃO COMPORTA O AMOR À PÁTRIA (COMPLEMENTO CONTRA-EXEMPLAR ÀS BENESSES BUROCRÁTICAS DE OUTRORA)

Quando desliguei a TV na noite de ontem, após a minha frustração lancinante com a subsunção de reivindicações nacionalistas aos caprichos de uma diretora com talento superestimado, deitei-me no sofá e li algumas páginas do romance angolano “A Geração da Utopia”, de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, que assina como Pepetela, cuja sensatez reivindicativa, ao contrário do que se manifestara na brasileira com ascendência magiar, está fadada à genialidade até mesmo por vias involuntárias. Dividido em quatro macro-segmentos (“A Casa”, “A Chana”, “O Polvo” e “O Templo”), escritos com intervalos de mais ou menos dez anos entre um e outro, “A Geração da Utopia” é, desde já, um de meus livros favoritos, ainda que esteja apenas na metade. É tudo tão urgente, é tudo tão político (no sentido mais minimalista do termo) que não posso esquivar-me de ser atingido no cérebro, no coração, no pênis e onde quer mais que eu demonstre sensibilidade em relação aos nervos de meu corpo!

A primeira frase do romance já me encantara por completo: portanto, só os ciclos eram eternos”, escreveu Pepetela em 1961, desafiando os detratores que lhe disseram que “portanto” é uma palavra que só pode ser utilizada em contextos que visem à conclusão de um raciocínio. “Daí a raiva do autor que jurou um dia havia de escrever um livro iniciando por esta palavra. Promessa cumprida”. E, ainda na primeira página de seu livro, já havia um raciocínio a ser concluído: um raciocínio que leva a novos raciocínios e aos inúmeros epílogos que se somam aos capítulos, à busca eterna pela liberdade. A trama do livro? A História de Angola, narrada pelos olhos e sentimentos de um grupo de estudantes que se reencontra em Portugal e, depois, nos combates sangrentos pela independência do país africano, reconhecida somente em 11 de novembro de 1975. O que me traz à mente outra anedota real de meu trabalho como recepcionista do DAA.

Recentemente, um graduado em Ciências Econômicas entregou-nos os documentos requisitados para a confecção de seu Diploma. Na certidão de nascimento, constava: “nascido em Luanda – Portugal, 1971”. Na carteira de identidade, “nascido em Luanda – Angola”, expedição da 2ª via do documento: 2003. A funcionária responsável pela análise dos documentos chamou-me para mostrar a discrepância geográfico-informativa e eu expliquei-lhe que os documentos estavam em ordem. “Até 1975, Luana, capital de Angola, era província de Portugal. Por isso, a documentação dele está em ordem sim”. Isso era eu dizendo. “E eu lá tenho a obrigação de saber que o País se tornou independente depois que ele nasceu ou não?! Ele vai ter que me trazer documentos atualizados com a mesma nacionalidade em ambos!”, contestou ela. E o graduado até hoje enfrenta pendengas burocráticas para receber um pedaço de papel que lhe permitirá exercer suas atividades legais enquanto economista. Este é um exemplo de que a burocracia nem sempre funciona?

Tomei como pessoal a angústia documental do formando, ainda que, à época, não tivesse sequer ouvido falar do romance que ora me apetece, e, como tal, comuniquei o problema histórico à minha chefa, que se comprometeu a consultar a procuradoria Jurídica da UFS em apoio ao graduado, cujos ancestrais já foram largamente vitimados pelos derramamentos de sangue nacionalistas, conforme metaforiza a bandeira do País, em que o vermelho diz respeito ao que corre em nossas veias. O processo de independência de Angola foi muito violento, como sói acontecer em qualquer questão que envolva a África, comumente desmerecida pelos interesses oportunistas e desumanos das grandes metrópoles mundiais. E, ainda hoje, 35 anos e dois dias desta data de suposta libertação colonial, o que não falta em Angola, infelizmente, é violência!

O que me traz de volta ao romance: os dois primeiros segmentos lidos forma escritos antes da tal data: “A Casa” data de 1961 e se passa nas circunvizinhanças de uma universidade lusitana, enquanto “A Chana” data de 1972 e se passa nas regiões desérticas que fazem fronteira com a Zâmbia. O tom de escrita entre um e outro segmento é muito diferente: no primeiro, há ainda a utopia de que o título fala, os personagens falam de sexo, de sonhos, de esperanças profissionais, de desejos familiares, de preconceitos e sub-preconceitos, de amor ao próximo, em geral, enquanto que, no segundo, o que há é fuga, é sangue, é a necessidade de comer que faz com que até mesmo corças em estado avançados de gravidez sejam decapitadas diante de uma fogueira rala. Diz um dos personagens: “a verdadeira luta de classes é a contradição que opõe os que passam o dia a pensar na barriga para a encher e os que, se nela pensam, é apenas para a esvaziar. E não me venham com teorias, esta é a única verdade”. E eu não venho com teorias. Calo-me, por ora, enquanto preparo-me para iniciar a leitura do terceiro segmento, “O Polvo”, escrito em abril de 1982. Meu sangue lateja!

Wesley PC>

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