segunda-feira, 8 de novembro de 2010

PÁGINA 36: “A QUESTÃO É QUE VOCÊ NÃO SABE O QUE É QUE ESTÁ PARANDO QUANDO PÁRA ALGUÉM”

Ainda não é desta vez que vou elevar a minha voz para dizer que sou fã do Cormac McCarthy, mas, definitivamente, não tem como permanecer psicológica e/ou sociologicamente incólume depois que se lê qualquer um de seus livros. Estou ainda no segundo, mas já tive a oportunidade de assistir a algumas bem-sucedidas adaptações cinematográficas de obras suas, sendo o ótimo “Onde os Fracos Não Têm Vez” (2007, de Joel & Ethan Coen), sem dúvida, o ponto máximo. E, não por acaso, entre as 14h e 23h de hoje, estive entretido, possuído, vidrado na leitura de “Onde os Velhos Não Têm Vez”, livro que o norte-americano Cormac McCarthy lançou em 2005. Escritor macho é aquele ali. E, portanto, cada página virada e cada vírgula eventualmente ausente eram como um soco de punho fechado em minha cara!

Não sei se parecerá de bom tom comparar o que filme e livro têm de diferentes, um em relação ao outro, mas existem tons bastante específicos em cada uma das versões da mesma estória. Se o filme dos irmãos Joel & Ethan Coen tomam algumas liberdades supressoras em relação ao livro (o tráfico de drogas é muito mais secundarizado no roteiro, a composição do matador Chiguhr é ainda mais lacônica e invulgar do que a descrição pormenorizada de seus olhos azuis faz supor, alguns personagens secundários são abandonados na versão fílmica), este é muito mais claro em sua “lição de moral”, em sua profunda visão de mundo, entrecortadamente pertencida ao envelhecido Xerife Bell, que abre cada capítulo com brilhantes e amargas reflexões sobre a decadência dos valores contemporâneos, o que explica porque o aparentemente pacato Llewelyn Moss se mete na enrascada em que se meteu por causa da valise de dinheiro sujo que encontra no deserto ou porque dois garotos brigam por uma nota de cem dólares que não queriam aceitar quando prestam socorro ao acidentado Chiguhr. E é o Xerife Bell quem tem a oportunidade conscienciosa de alertar-nos de que existe algo bem pior do que vender drogas às crianças nas portas das escolas: as crianças compram! E, como ele mesmo diz, “alguém que não saiba a diferença entre estuprar e assassinar pessoas e mascar chiclete tem um problema muito maior do que o meu”. E eu estava ao lado dele nesta conclusão!

Tanto estava que, na página 91 da edição da Alfaguara (2006) que me chegou às mãos, li um diálogo que fez com que eu exultasse os diretores da versão filmada do livro pela perfeita escolha do cínico e cativante ator Tommy Lee Jones como intérprete do quase onisciente Xerife Bell:

“ – Você já esteve num matadouro?
- Sim senhor. Acho que sim.
- Você saberia se tivesse.
- Acho que fui uma vez quando era criança.
- Lugar curioso para se levar uma criança.
- Acho que fui sozinho. Entrei escondido.
- Como é que eles matavam o boi?
- Havia um sujeito sentado numa baia estreita e eles faziam os bois passarem um de cada vez e esse sujeito os acertava na cabeça com uma marreta. Ele fez isso o dia inteiro.
- Isso mesmo. Já não fazem mais desse jeito. Usam uma arma de ar comprimido que dispara um pino de aço. Dispara até uma certa distância. Colocam esta coisa entre os olhos do boi e apertam o gatilho e pronto. É rápido assim”.


Segundo a instância narrativa do livro, o interlocutor do Xerife Bell aguarda que ele fale mais alguma coisa depois disso, mas ele não continuou. E eu me senti como os adolescentes futuramente estraçalhados em “O Massacre da Serra Elétrica” (1974), clássico do cineasta Tobe Hooper, em que uma explicação sub-reptícia mui semelhante para a explosão de violência contemporânea é utilizada, sob o viés empregatício da mesma modificação no modo de se matar bois. E, por ser vegetariano, o golpe foi duas vezes mais doloroso em mim. Este tal de Cormac McCarthy sabe bem sobre o que fala!

Além dos personagens diametralmente opostos Bell e Chiguhr, há no livro e filme, também, o deslumbrado e idiotizado Moss, que engendra semi-voluntariamente a onda de mortes que encharca de sangue a trama. E, por vezes, somos convidados literariamente a partilharmos dos delírios persecutórios do personagem, que é assassinado elipticamente em ambas as obras. De forma simplesmente genial, em ambas as obras, pois ele é apenas uma ferramenta, um instrumento discursivo, um avatar minúsculo de como o Mal se instala hoje em dia (se bem que os acontecimentos do livro se passam em 1980, mas completamente aplicáveis aos dias de hoje). E, nesse sentido, eu devolvo a voz da razão ao Xerife Bell: “acho que se você fosse Satã e estivesse sentado pensando em alguma coisa capaz de colocar a humanidade de joelhos você provavelmente se decidiria pelos narcóticos” (p. 180). Sem vírgulas. “Talvez ele tenha feito isso”, foi a resposta que veio em seguida. Eu que não queira dizer o contrário. Que venha o próximo livro de Cormac McCarthy. Em breve, eu assumo, aos gritos, que sou fã de seu estilo seco e picotado de contar uma estória cruel e ultra-realista (mesmo no terreno da ficção científica), mas, por ora, ainda acho seus personagens muito melhores do que ele. Se é que é possível desvincular criador, criaturas e contexto de criação, neste caso. E no sonho eu sabia que ele estava indo na frente e que ele ia fazer uma fogueira em algum lugar no meio de toda aquela escuridão e de todo aquele frio e eu sabia que quando chegasse lá ele estaria lá. E então eu acordei”. Eu também!

Wesley PC>

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