sábado, 20 de novembro de 2010

EU NÃO AGÜENTO NEM A DOR NEM O SOFRIMENTO?!

Não sou eu que me disporei a responder. Não sei e prefiro não ser testado neste sentido. Tenho certeza de que me entregaria mui facilmente se fosse exposto às bárbaras torturas físicas que acabo de presenciar em mais um filme genial do ultra-pós-moderno Takashi Miike, “Ichi – O Assassino” (2001).

Numa das cenas do filme, o sádico personagem Kakihara (interpretado magistralmente pelo sensual Tadanobu Asano) pendura um interrogado no tato, através de diversos ganchos pontiagudos em suas costas. Perfura sua face com agulhas de aço e, num paroxismo quase insuportável de perversão, derrama óleo escaldante sobre suas costas e couro cabeludo. Minha mãe, da cozinha, perguntava: “isto é hora de ver um filme destes Wesley, com tantos gritos e gemidos?”. Mal sabia ela o que estava a acontecer diante de mim...

Para além de toda a dor que exalava do filme, intra- e extra-diegeticamente, o que me fez ser tentado a desviar o olhar da tela foi o momento que se segue, mostrado em foto: tendo descoberto que o homem que torturara não estava envolvido no seqüestro que tencionava resolver, Kakihara oferece um pequeno sacrifício como demonstração de seu arrependimento. Diz que aprecia sobremaneira os doces e acrescenta: “vou extrair agora o órgão de meu corpo que tanto me causa prazer”. E, com uma espada suja, corta fora a parte frontal de sua língua. E eu me contraía violentamente no sofá. E se fosse eu, em qualquer um dos lados da tortura representada, até que ponto ousaria desfazer-me de uma parte de meu corpo em troca da expiação fetichista de uma culpa? Não sou eu que me disporei a responder, mais uma vez.

Há alguns dias, assisti a um clássico filme de Roberto Rossellini, em que seu protagonista religioso dizia que o sofrimento é um dom de Deus”, pouco antes de morrer. Concordei com ele, no sentido de que muito valorizo o tipo de entendimento que podemos extrair quando sobrevivemos a uma provação proto-sacrifical. Escrevi um texto sobre isto (eis aqui) e uma comentadora disse que prefere a dor ao sofrimento, no sentimento de que a primeira traria mais aprendizado do que o segundo. E eu ousei discordar, mas prefiro não me arriscar a uma comparação prática. Deixe quieto.

Terminado o filme do Takashi Miike, prenhe de cenas de tortura, decapitação, espancamentos e sofrimentos ainda mais atrozes que a descrita automutilação, lembrei da primeira vez que li o famoso apotegma poético de Carlos Drummond de Andrade “a dor é inevitável, o sofrimento é opcional”: numa dia qualquer de 1996, na porta do banheiro do colégio em que estudei o Ensino Médio. O autor da pichação desta frase atribuiu a mesma ao vocalista do grupo Legião Urbana, enquanto eu teimava em não entender o seu sentido. Nunca consegui vivenciar o sofrimento como algo opcional. Sempre me pareceu tão inevitável quanto a dor... Tão inevitável quanto!

Engraçado é como Takahi Miike resolve genialmente os problemas morais que poderiam surgir num roteiro tão delicado quanto este: as motivações dos personagens são todas abordadas enquanto meros ‘McGuffins’ (ou seja, conforme nos ensinou Alfred Hitchcock, são o que menos importa na narrativa, mesmo se forem citados de 10 em 10 segundos); o personagem Kakihara é dotado de instintos tão masoquistas quanto sádicos (vide o momento em que ele pede para ser espancado por uma prostituta ou quando enfia duas enormes agulhas de aço em seus ouvidos, ui!); as pulsões homoeróticas do mesmo Kakihara jamais são negadas; a retroalimentação malfazeja da vingança é destruída quando o anti-heróico personagem-título decapita, sem cerimônia, um garotinho de 10 anos que chorava a morte de seu pai; e a saturação imagético-sonora do filme funciona como metonimização suficiente do contexto sentimentalmente derruído que engendra personagens tão malévolos quanto aqueles. Não há bons nem maus no filme. Há pessoas que agem pura e unicamente em função dos seus sofrimentos, sejam eles auto-infligidos ou não. Por isso, eu me recuso em responder à pergunta do título desta postagem. Não consigo, não quero, não me arrisco. E ainda acho mais positivamente valorativo sofrer do que sentir dor!

Wesley PC>

2 comentários:

Debs Cruz disse...

Só sofre quem quer...
Quem tem apreço pelo sofrimento,
e pelo que ele pode proporcionar.
Eu sinto dor, mas não tenho laço
nenhum com o sofrimento.
Eu até costumo dizer que
não tenho vocação pra sofrer.
Digo, e afirmo logo em seguida:
Eu tenho certeza que não tenho
vocação pro sofrimento.

E, pra mim, o sofrimento tá muito ligado
a uma vitimização da pessoa, nêgo.
Eu não gosto de ser vítima de nada.
Tanto, e até mais, quanto não
gosto de colocar ninguém como vítima.
Afinal de contas, quase nunca
alguém é 100% vítima de alguém,
ou de alguma situação.
Tem gente que é muito mais de si, né?
Falei, falei, falei... e não disse qse nada. Mas era mais ou menos isso aí.
kkkk

Um cheiro!


Pseudokane3 disse...

Pois dor eu tento relevar...
A não ser quando é física e não depende de mim.
Mas sofrimento é algo vicioso.
Acho que tenho apreço.
Acho que nasci para ser vítima e algoz de mim mesmo, ao mesmo tempo, conforme disse noutra postagem...
Ai, ai...

Mas disseste, sim - só vais numa corrente diferente da minha (heheheheheheheh)

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