sexta-feira, 16 de outubro de 2009

“ME QUEDÉ POR DOLOR Y CELOS”


Curioso que precisamente esta frase seja aquele que imediatamente me faz recordar “Abraços Partidos” (2009), novo filme de Pedro Almodóvar, o qual eu acabo de ver. Talvez eu precise de mais algum tempo para tecer juízos sobre este filme enigmático e formulaico, mas, conhecidamente precipitado como sou, arrisco: pode ser o pior filme do gênio espanhol e certamente depende de conhecimento prévio e minucioso da carreira do cineasta para ser fluído, mas ainda assim é digno de nota e muita tensão emocional.

Comecemos pelos problemas: mais do que em qualquer outra de suas produções, a forma está sobressalente ao conteúdo. Supondo que tal heresia dicotômica possa ser dita sobre uma obra de arte, aqui o cineasta realiza um trabalho que, na escrita, fica abaixo de sua pujança visual, dado que cada fotograma enaltece os sentidos do espectador, parecendo por vezes uma enciclopédia pictórica, tamanha a quantidade de referências despejadas na tela. Levando-se em consideração que o personagem principal do filme é um homem que se divide entre as tarefas de diretor de cinema e roteirista e que o filme que ele realiza em dado momento reproduza quase fielmente os diálogos e situações e caracteres de “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” (1988), é lançado o desafio: até que ponto o protagonista é um fac-símile do próprio Pedro Almodóvar? Pessoalmente, acho arriscado partir por este viés. Prefiro assumir que não entendi o que ele quis dizer e gostei do filme mesmo assim. Modéstia e sinceridade conjugam-se bem diante de peças apaixonadas de cinema.

Se existe algo que este “Abraços Partidos” é, com certeza a expressão apaixonado pelo cinema em si resume bem: cada segundo do filme, cada frase, cada pôster mostrado nas paredes, cada naco de pele exposto diante das lentes respira e transpassa amor violento pela 7ª Arte. Conforme uma amiga querida vem me ajudar criticamente: é um filme que nos obriga a estudar!


Durante a sessão, fiquei impressionado pelo modo como o diretor/roteirista estraçalha quaisquer limites imaginários que possam haver entre os conceitos de sintagma e paradigma narrativos. O truque da história dentro da história dentro do filme dentro do filme chega ao paroxismo do brilhantismo numa das mais hipersaturadas seqüências do cinema mundial: quando os personagens de Penélope Cruz e Lluís Homar fotografam-se a si mesmos diante de uma televisão que está exibindo um filme de Roberto Rossellini enquanto “Werewolf”, música de Cat Power, é executada na trilha sonora. A quantidade infinda de signos de todos os tipos misturados nesta cena breve atesta que “Abraços Partidos” necessita de demoradas exegeses para ser digerido, consumido e respeitado como se deve. Não é um filme de instinto como o eram suas produções iniciais da Movida madrileña. É um filme extraordinariamente estruturado, tal qual o plano de vingança que é revelado em dado momento, plano este que escancara mais uma referencia óbvia e solene (ao ‘film noir’ clássico hollywoodiano) e que justifica a menção titular desta postagem á dor e aos ciúmes como motivo de permanência num contexto de sofrimento voluntário. Pode parecer hermético à primeira vista, mas as pistas estão todas lá: e são geniais, mesmo que não consigam ser decifradas!

Se “Abraços Partidos” foi acusado de conter fórmulas, é chegada a hora de corrigir tal acusação e dizer que estão lá amadurecidas todas as marcas registradas do diretor: se a obsessão pelas formas circulares é, por exemplo, metonomizada na focalização de bobinas de película fílmica que se rebobinam, estas mesmas bobinas são fundidas à imagem de um lance quadrilateral de escadas; se a sobreposição de vozes alheias aos dizeres de outrem são reproduzidos na cena em que uma especialista em leitura de lábios decifra o que um casal apaixonado e interdito diz em momentos íntimos, isto torna-se parte essencial da trama montada e não mais um artifício aparentemente gratuito de virtuosismo; se a permissividade atroz dos amores obsessivos é novamente posta em xeque, a sobriedade é agora a tônica dominante. “Abraços Partidos” pode até ser o filme menos elogiado do cineasta, mas grita, geme, urra de vontade de ser decifrado – e de confundir cada vez mais. Por isso, ele necessita ser revisto e recomentado e recomendado, em suma. Pedro Almodóvar é genial: mesmo e principalmente quando finge estar falando somente para aqueles que já o conhecem!

Falar mais qualquer coisa por ora seria estragar o prazer supracognitivo e emocional de quem ainda não viu o filme...

Wesley PC>

Um comentário:

Pseudokane3 disse...

: é quase um pecado se meter a falar de um filme tão complexo sem ter respirado direito, mas...

Eu não agüentei: a dor e os ciúmes urgiam em mim!

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