segunda-feira, 29 de junho de 2009

“A REALIDADE É TÃO VIOLENTA, QUE AO TENTAR REPREENDÊ-LA, AS IMAGENS REBENTAM”


Quando o genial escritor pernambucano João Cabral de Melo Neto morreu, em 09 de outubro de 1999, a Rede Globo de Televisão exibiu um especial de qualidade cinematográfica dirigido por Walter Avancini, que, à época, eu tive a sorte de gravar em VHS. Vi e revi “Morte e Vida Severina” (1982, cuja imagem de abertura é mostrada na foto) várias vezes, encantado pela rudeza e concomitante beleza das canções, pelas interpretações alvoroçadas de José Dumont, Tânia Alves e Elba Ramalho e pelo enredo célebre em nosso pós-Modernismo Brasileiro. Na manhã de hoje, encasquetei de ver a versão para o mesmo filme, com o mesmo elenco, que o pouco inspirado Zelito Viana dirigira 5 anos antes e me decepcionei sobremaneira. Ao optar por mesclar duas obras poéticas do mesmo autor e suprimir a narrativa (e as canções) em virtude de um incremento documental, o filme naufraga vergonhosamente em seus intentos denuncistas. Cada vez, por exemplo, que algum dos lavradores entrevistados pela equipe comiserante do filme reclamava da dificuldade em alimentar seus oito filhos, minha mãe (que estava na sala comigo) punha na má administração conceptiva a culpa para alguns dos problemas sociais que acometiam aquelas pessoas rudes e simples, acostumadas a usar “os dedos como iscas para pescarem camarão”, como diz a letra de uma das canções celebremente musicadas por Chico Buarque de Holanda. Prestando atenção nos comentários registrados à época das filmagens – e que alguns críticos consideram positivos por mostrar que, 32 anos depois, pouca coisa mudou no que se refere à exploração e desamparo sentido pelos sertanejos e imigrantes – receei concordar com ela, imaginando em que condições aquelas pessoas faziam sexo, em como beijos, abraços e carícias supostamente mais ousadas aplacariam um dia de suor e sangue no canavial ou na usina. Lembrei de um ótimo filme do Andrucha Waddington, em que uma mulher consegue administrar um relacionamento amoroso simultâneo com três homens (ou protótipos de maridos, como queiram). Em breve, eu falo sobre este filme por aqui. Por ora, lamento o desperdício do talento de João Cabral de Melo Neto em um filme que, ao invés de aplacar preconceitos, alimenta-os, tornando a seqüência em que a pergunta de um retirante sobre “não ser melhor saltar da ponte da vida” é interrompida pelo nascimento de uma criança recém-nascida preocupantemente legitimadora do tipo de bode expiatório que minha mãe (e eu, por extensão) encontrou para fingir que o desamparo mostrado na tela não lhe diz respeito. Diz sim – e muito! Por isso, aguardo ansioso a oportunidade de rever o clássico musical bem-dirigido pelo Walter Avancini ou entrar novamente em contato com as palavras sublimes do autor destas palavras “para serem cantadas em voz alta”. Bendito seja João Cabral de Melo Neto!

“Todo o céu e a terra lhe cantam louvor.
Foi por ele que a maré esta noite não baixou.

— Foi por ele que a maré fez parar o seu motor:
a lama ficou coberta e o mau-cheiro não voou.

—E a alfazema do sargaço, ácida, desinfetante,
veio varrer nossas ruas enviada do mar distante.

— E a língua seca de esponja que tem o vento terral
veio enxugar a umidade do encharcado lamaçal”

Wesley PC>

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