domingo, 24 de maio de 2009

A TACITURNIDADE DITIRÂMBICA (UM COMENTÁRIO ELOGIOSO SOBRE A “SÍNDROME DA SERVIDÃO VOLUNTÁRIA”)


Dentre os filmes que vi ontem, entrei em contato com um documentário sobre o mordomo da residência de uma rica família diplomática. Pelo menos, assim eu pensava. Prestando atenção ao que sentira durante a sessão de “Santiago” (2007, de João Moreira Salles), após o encerramento da mesma, percebi o quanto algumas pessoas se enganam em relação ao que o filme realmente deseja transmitir. Por mais que o mordomo entrevistado e obcecado pelas linhagens aristocráticas do passado e do presente esteja em primeiro plano, o subtítulo elíptico do filme (“reflexão sobre o material bruto”) elimina dúvidas insistentes acerca de suas intenções: o filme é um petardo contra a dramatização espetaculosa nas representações de vidas reais.

Independente de gostarmos não das obras roteirizadas e dirigidas pelo aquisitivamente rico João Moreira Salles, somos obrigados a ficar de quatro diante de sua coragem surpreendente em desmantelar recursos complicados de concepção estética, em que até mesmo situações aparentemente simples e corriqueiras como uma folha que cai sobre uma piscina ou um velhinho terno que chora são mostradas pelo âmbito da construção proposital (leias-se artificial) de climas dramáticos. Durante os 80 minutos de duração do filme, o diretor (que passa um texto em primeira pessoa à voz narrativa de um de seus irmãos) revela uma dolorosa impossibilidade em desestabilizar relações de poder disfarçadas de relações humanas há muito constituídas. Seja por que o mordomo representado seja um idólatra longevo de tudo o que pareça aristocrático, seja porque, mesmo aposentado, ele não deixa de enxergar “Joãozinho” como sendo um patrão, “Santiago” incomoda o espectador o tempo inteiro por ser precisamente o registro daquilo que, quando as imagens foram captadas (em 1992, pouco antes da morte do entrevisatdo), tentava ser escondido a qualquer custo, sob o prisma da realidade poética. Assim, nesta versão reflexiva de um filme inacabado, vemos um mesmo plano simples ser fotografado por minutos a fio, percebemos o mordomo repetir um mesmo monólogo triste e aparentemente espontâneo trocentas vezes (vide a sua maravilhosa paráfrase bergmaniana de que “somos todos mortos insepultos sob um céu largo e cruel”) e ouvimos alguns comandos directivos bastante severos, a tal ponto que a própria instância narrativa do filme lamenta o fato de não ter captado as imagens do que seria a mais sincera demonstração afetiva de seu objeto pessoal der estudos. Enquanto Santiago insistia em falar algo, em confessar uma de suas integrações passionais mais intensas, João Moreira Salles só gritava, repetidamente: “estamos sem tempo, Santiago. Fala logo aquilo que ensaiamos para finalizarmos as filmagens!”.

Eu poderia dedicar aqui infinitas palavras à contemplação intencional do quão relevante este filme é para qualquer pessoa que já tenha enfrentado o verdadeiro e lancinante dilema moral que nos aflige quando nos prestamos a retratar a realidade (tarefa esta que prometo repetir após novas revisões deste filme precioso), mas gostaria de aproveitar a oportunidade para comentar o que o filme tem de menos relevante: a predisposição do personagem em servir, as suas crenças intrínsecas de que música clássica de qualidade deve ser executada de fraque, a fim de instaurar respeito, sua obsessão em registrar a vida de famílias nobres... Tudo isto me toca em particular, no sentido de que entendo o que se passava na mente daquele ambíguo personagem real, quando se submetia aos gritos de seu antigo patrão como se isto fosse um ato de amor recíproco. Eu sei o que é isso, eu sei o que é acreditar nisso, eu conheço os mecanismos ideológicos e minuciosos que nos levam a chegar a tais conclusões. Por isso, é tão relevante que Santiago se dedique a explicar tanto tempo as origens humildes e servis de sua família imigrante, por isso é tão compreensível seu orgulho quando fala que conhecera Juscelino Kubitschek e João Goulart em pessoa, por isso não é difícil crer que um dos melhores dias de sua vida foi justamente quando seus patrões lhe dedicaram uma comemoração surpresa de aniversário... É um filme impressionante, digo apenas isso. E, sem querer desviar demais o assunto, queria utilizar aqui mais uma canção canônica da Rita Lee, “Bwana”, a fim de explicar a mim mesmo que mecanismos vitalícios unem-me à solidão conformada do personagem, que se percebe vivendo num sepulcro. E, como sempre, dedico-a a Rafael Maurício, pois foi ele quem cunhou o termo contido no título desta postagem (ao menos, no que se refere diretamente a mim) e é a ele que me dedicarei a servir, sem interesses parcos e imediatistas, até o final perceptível de minha vida:

“Bwana, Bwana
Teu desejo é uma ordem
Te satisfazer é o meu prazer...

Que não tem jeito,
O meu defeito é não saber parar
Volúpia!...

Adeus sarjeta,
Bwana me salvou.
Não quero gorjeta,
Faço tudo por amor

(...)

Bwana Bwana,
Não sei cozinhar,
Mas sou carinhoso e tenho talento prá boemia
Corre sangria nas minhas veias
Volúpia!...

Adeus sarjeta
Bwana me salvou
Não quero gorjeta,
Faço tudo por amor”


Faço tudo por amor!

Wesley PC>

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