sexta-feira, 17 de abril de 2009

A GENIALIDADE DA PERVERSÃO


“O Estranho Mundo do Zé do Caixão” (1968, de José Mojica Marins), visto ontem em Gomorra, é um filme dividido em três episódios: no primeiro, ladrões invadem a casa de um fazedor de bonecas e descobrem o que dá o efeito extremamente expressivo dos olhos destes brinquedos; no terceiro, um professor iconoclasta demonstra para alguns espectadores atônitos que os instintos são mais fortes que a razão e que o amor. Entre eles, há um episódio que é uma das mais belas elegias românticas já disfarçadas de filme de terror. Seu nome: “Tara”.

Na primeira cena do episódio, vemos uma mulher maravilhosamente bela se maquiar. Ela é bela, ela é linda, ela com certeza seduz todos a seu redor, inclusive a nós, espectadores. Quando ela está caminhando pela rua, a câmera abandona-a por alguns instantes e focaliza um grupo de mendigos que remexem uma lata de lixo, em busca de comida. Dentre eles, um famélico vendedor de bexigas que se apaixona pela moça. Talvez o certo fosse dizer que ele fica obcecado por ela, dado que não sabe de quem se trata, nunca lhe dirige a palavra, apenas a observa, a contempla interminavelmente, enquanto ela caminha indiferente. E, enquanto ela a observa como se sua vida miserável dependesse disso, ela vive, ela beija um homem que encontra na rua, ela existe. Num dado dia, ela se casa. O mendigo vendedor de balões a observa, choroso, como sempre. Na cerimônia, porém, ela é esfaqueada por uma invejosa. Morre, é enterrada, após um longo velório e um destacado cortejo. Percebendo que todos os familiares da moça foram embora, o mendigo invade a sepultura e profana o corpo morto da jovem, enchendo-a de beijos apaixonados, tocando em seu corpo como se beirasse o contato com a mitológica Pedra Filosofal. Ama-a como se ela estivesse ainda viva, como se algo fizesse sentido para ele. Ama-a, mesmo morta, ama-a de verdade. E o episódio termina...

Não preciso explicar por que gostei tanto deste episódio, suponho, mas aproveito a deixa para defender mais uma vez a genialidade extrema deste gênio metódico que atende pelo nome de José Mojica Marins, largamente subestimado pelos apreciadores de cinema, infelizmente cooptado pela Indústria Cultural, que enxerga em seus maneirismos apenas um apanhado de trejeitos cômicos. Na obstante o filme como um todo ser meritório, é em “Tara” que o diretor atinge o paroxismo de sua obra, trabalhando apenas com imagens e música, com beleza e exasperação, com desejo e morte. Obra-prima, como a vida dolorosa que me deram de presente...

Wesley PC>

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